16.7.11

MANUEL ANTÓNIO PINA


A QUARTA PORTA


É a solidão
o que o coração procura,
como poderei não
saber o que não sei?

Estou cada vez mais longe de qualquer coisa,
regressarei alguma vez
a tudo o que há-de vir?
O que está atrás de ti

e a tua imagem
que o Futuro persegue.
Este é um lado de tudo
e o outro é o mesmo e o outro.


(de Aquele que quer morrer, 1978 / in Poesia Reunida, Assírio & Alvim, 2001 - documenta poetica)

14.7.11

HUGO MILHANAS MACHADO


COL DU TOURMALET


Desta vez é que é muito embora
não se saiba muito bem porquê
ele vai feroz no alto do Tourmalet
faz lembrar o dia em que te imaginei
e acreditei não querendo a verdade porém

Faz lembrar o dia em que te imaginei
quando digo desta vez é que é
e agora na verdade já nem sei
que piso que vejo e grito é quem
este homem no alto do Tourmalet?


(de As Junções, edições ArteFacto, 2010)

13.7.11

Vens contraciclo a iluminar,
Traçado em arco de incongruências
Dissimuladas por acção do vento
Levando-te, ágil, por outros lugares.

(mas que assombros segues, quais os limites
ao próximo passo no teu caminho?)

Lugares de confluência e de cesura
Onde semeias canto e labirinto,
Fontes da memória sépia que trazes
ao trilho rasgado no campo seco.
SOPHIA DE MELLO BREYNER ANDRESEN


A MULHER NA CIDADE DO HOMEM


[...]
Quando olhamos para o passado vemos que a contribuição da mulher no mundo da criação é muito limitada. As leis, a filosofia, a matemática, a pintura, a arquitectura, a escultura, a música foram quase exclusivamente criadas por homens. A mulher aparece nalgumas artes como intérprete, raramente como autora.
Isto «parece mostrar» que a capacidade criadora da mulher só existe em planos secundários ou subsidiários.
Mas há uma excepção que nos coloca no centro do problema.
Esta excepção é a poesia.
Sapho, Emily Brontë, Emily Dickinson, Louise Labé são poetas na plenitude da criação. Para além do tempo e das mutilações, um fragmento de Sapho conserva aquele poder de invocação total que é a marca de fogo da grande poesia. E da nossa época não poderei deixar de citar Edith Sitwell, Nelly Sachs, que este ano recebeu o prémio Nobel, Gertrude Von Le Fort, que é um dos grandes poetas da transcendência, e Cecília Meireles que é um dos cimos da moderna poesia brasileira.
Esta excepção que a poesia é coloca-nos no centro do problema por duas razões: porque nos esclarece sobre a situação da mulher, porque nos esclarece sobre a natureza e a vocação de humanidade total da mulher.
A poesia é a arte que menos depende da contingência. Para escrever um poema é preciso ser poeta e depois basta um papel e um lápis.
A poesia pede a liberdade da alma que a alma por si mesma conquista, pede a escolha, a ascese, a atenção do ser a todos os seres e depois basta-lhe um papel e um lápis. O escultor ou o arquitecto para realizarem a sua vocação precisam duma longa aprendizagem com escola, mestre, atelier, público, encomenda e comprador. É por isso que, e isto nos esclarece sobre a situação da mulher, a escultura e a arquitectura, como a música, o teatro e a pintura, são artes que só florescem nos países onde existem circunstâncias propícias à cultura. Pelo contrário, a poesia é a arte que sobrevive e resiste nos países pobres, subdesenvolvidos e ocupados.
Se ao longo de tantos séculos a poesia foi quase a única arte onde a mulher mostrou capacidade criadora, isto não quer dizer que a mulher só era capaz de poesia, mas sim que para ela, como para um país subdesenvolvido ou ocupado, a poesia era a única arte possível. A única arte onde a pura liberdade do espírito criador podia resistir à pressão da contingência.
Se o nome Poesia deriva do verbo «poien» que significa criar é porque é na poesia que a criação se mostra no seu estado mais despojado e nu. O material do poeta é a palavra, a palavra que é por excelência o sinal humano. A poesia parte do verbo, do princípio, parte dum tempo anterior à contingência que é o puro tempo do ser. O espírito poético é o espírito daqueles que a si mesmos se reconhecem não como situação, mas como ser a caminho.
A poesia foi durante séculos a única excepção; mas a chegada do século XX traz consigo algo de novo.
A partir de então a capacidade artística e intelectual da mulher começa a mostrar-se em actividades que, embora não fossem em si mesmas masculinas, pareciam ultrapassar a possibilidade feminina. Todos conhecem o nome de Maria Curie, todos sabem que várias mulheres trabalharam nos cálculos matemáticos dos voos espaciais, todos conhecem a pintura de Maria Helena Vieira da Silva, a escultura de Bárbara Hepworth, Germaine Richier, Louise Nevelson.
No entanto as mulheres não fizeram uma revolução e ninguém fez, para elas, uma revolução. Simplesmente a humanidade avançou. Apesar das guerras, dos conflitos, dos crimes, dos abusos e da terrível pressão das forças de reacção, a nossa época tomou uma consciência nova do valor da vida humana. O nosso tempo não admite que existam vidas sacrificadas nem vidas diminuídas mas exige para cada ser humano o direito à plenitude da sua humanidade. E foi nesta consciência nova que a mulher acedeu àquele plano da criação onde a plenitude da vocação humana se mostra.
É evidente que a parte que a mulher tem tomado no trabalho do mundo moderno contribuiu para a sua emancipação. Mas só por si o trabalho não bastaria pois a mulher sempre trabalhou e em muitas épocas e lugares o trabalho para ela foi apenas uma duplicação da escravatura. Verdadeiramente a libertação da mulher a que estamos a assistir resulta da tomada de consciência da dignidade humana que é a grande e difícil tarefa do século XX.
Pois não existe o problema da mulher, mas sim o problema da humanidade. E é por isso que o Feminismo é um caminho errado e já ultrapassado. Aliás sempre à roda da mulher se criaram falsos problemas.
Assim muitas vezes se tem oposto vocação maternal e vocação criadora. Mas a maternidade é plenitude e não mutilação, é maioridade e não menoridade. E a maternidade que é natureza e vocação é também escolha e responsabilidade. Quanto mais responsável a mulher se sentir pelos filhos que tem, mais responsável se sentirá pelo mundo com que os seus filhos vão viver. E também através dos filhos a mulher compreende que verdadeiramente a sua causa não é a causa da mulher, mas sim a causa da humanidade.


(in A Mulher na Sociedade Contemporânea - colóquios na A. A. da Faculdade de Direito, Prelo editora, 1969 - Cadernos de Hoje)

12.7.11

PABLO NERUDA


BAIRRO SEM LUZ


Vai-se embora das coisas a poesia
ou não a pode a vida condensar?
Ontem – olhando o último crepúsculo –
eu era mancha de musgo entre ruínas.

As cidades – fuligens e vinganças –,
a porcaria cinzenta dos subúrbios,
a oficina que verga as espaldas,
o patrão de olhos túrbidos.

Sangue púrpura sobre as colinas,
sangue sobre as ruas e as praças,
dor de quebrados corações,
podre de fastios e lágrimas.

Um rio abraça o subúrbio
com mão gelada que procura nas trevas:
sobre as suas águas
olham-se as estrelas com vergonha.

E as casas que escondem os desejos
por trás de luminosas janelas,
enquanto lá fora o vento
a cada rosa leva um pouco de lama.

Ao longe... a bruma do esquecimento
– espessos fogos, desfeitos quebra-mares –
e o campo, o verde campo! onde ofegam
os bois e os homens melancólicos.

Eu vou crescendo por entre as ruínas,
a sós remoendo toda a tristeza,
como se o pranto fosse uma semente
e eu o único sulco da terra.


(de Crepusculário, tradução e prefácio de Rui Lage, edições Quasi, 2005 / original: Crepusculario, 1923)


EU FUI MARCANDO...

Eu fui marcando com cruzes de fogo
o atlas branco do teu corpo.
A boca era uma aranha que corria a esconder-se.
Em ti, atrás de ti, temerosa, sedenta.

Histórias para contar-te à beira do crepúsculo
boneca triste e meiga, para que não estivesses triste.
Um cisne, uma árvore, algo longínquo e alegre.
O tempo da vindima, o tempo maduro e frutífero.

Eu que vivi num porto que era de onde te amava.
A solidão percorrida de sonho e de silêncio.
Encurralado entre o mar e a tristeza.
Calado, delirante, entre dois gondoleiros imóveis.

Entre os lábios e a voz, algo vai já morrendo.
Algo com asas de pássaro, algo de angústia e de olvido.
Da mesma forma que as redes não retêm a água.
Boneca minha, quase nem ficam gotas tremendo.
Mesmo assim algo canta entre estas palavras fugazes.
Algo canta, algo sobe até à minha ávida boca.
Oh poder celebrar-te com todas as palavras de alegria.
Cantar, arder, fugir, como um campanário nas mãos de um louco.
Triste ternura minha, mudas-te em quê de repente ?
Quando eu cheguei ao vértice mais atrevido e frio
fecha-se o meu coração como uma flor nocturna.


(de Vinte Poemas de Amor e Uma Canção Desesperada, tradução de Fernando Assis Pacheco, publicações Dom Quixote, 1971 / original: Veinte poemas de amor y una canción desesperada, 1924)


WALKING AROUND

Acontece que me canso de ser homem.
Acontece que entro nas alfaiatarias, nos cinemas,
flácido, impenetrável, como um cisne de feltro
que navega numa água de origem e de cinza.

O odor das barbearias faz-me chorar aos gritos.
Quero apenas um descanso de pedras ou de lã,
quero não ver estabelecimentos nem jardins,
nem mercadorias, lunetas, ascensores.

Acontece que me canso de meus pés e minhas unhas,
do meu cabelo e até da minha sombra.
Acontece que me canso de ser homem.

Todavia, seria delicioso
assustar um notário com um lírio cortado
ou matar uma freira com um soco na orelha.
Seria belo
ir pelas ruas com uma faca verde
e a dar gritos até morrer de frio.

Não quero continuar a ser raiz nas trevas,
vacilante, estendido, a tiritar de sono,
descendo, nas cercas molhadas da terra,
absorvendo e pensando, a comer dia após dia.

Não quero para mim tantas desgraças.
Não quero fazer mais de raiz e de túmulo,
de subterrâneo só, de adega com defuntos,
inteiriçados, e a morrer de angústia.

Por isso a segunda-feira arde como petróleo
quando me vê chegar com cara de prisão,
e uiva no seu decurso qual uma roda ferida,
e dá passos de sangue ardente rumo à noite.

E empurra-me para certos recantos, para certas casas húmidas,
para hospitais onde os ossos saem pela janela,
para certas sapatarias com odor a vinagre,
para ruas espantosas como fendas.

Há pássaros cor de enxofre e horríveis intestinos
pendurados nas portas das casas que eu odeio,
há dentaduras esquecidas numa cafeteira,
há espelhos
que deveriam ter chorado de vergonha e espanto,
há guarda-chuvas em toda a parte, e venenos, e umbigos.

Passeio calmamente, com olhos, com sapatos,
com fúria e esquecimento,
passo, atravesso escritórios e lojas ortopédicas,
e pátios onde há roupa pendurada num arame:
cuecas, toalhas e camisas que choram
lentas lágrimas sórdidas.


(in Antologia de Pablo Neruda, selecção e tradução de José Bento, editorial Inova sarl, 1973 / original de Residencia en la tierra, 1935)


HINO E REGRESSO

Pátria, pátria minha, a ti regressa meu sangue.
Mas peço-te, como o filho cheio de pranto
pede à mãe:
…………...……Acolhe
esta guitarra cega
e esta fronte perdida.
Saí a procurar-te filhos pela terra,
saí a erguer vencidos com teu nome de neve,
saí a erguer uma casa de madeira pura
e a levar a tua estrela aos heróis feridos.

Agora quero dormir na tua substância.
Dá-me uma clara noite de cordas penetrantes,
a tua noite de navio, altura de estrelas.

Pátria minha: quero mudar de sombra.
Pátria minha: quero trocar de rosa.
Quero pôr o braço na tua frágil cintura
e sentar-me nas tuas pedras calcinadas pelo mar
para deter o trigo e olhá-lo por dentro.
Vou escolher a flora delgada do nitrato,
vou fiar o estambre glacial do sino
e olhando a tua ilustre e solitária espuma
tecerei à tua beleza um ramo litoral.

Pátria, pátria minha,
rodeada de água combatente
e neve combatida,
em ti a águia junta-se ao enxofre
e na tua antártica mão de arminho e de safira
uma gota de pura luz humana
brilha incendiando o céu inimigo.

Guarda a tua luz, oh pátria!, mantém
a dura espiga de esperança no meio
do cego ar temível.
Na tua remota terra caiu toda esta luz difícil,
este destino de homens,
que te faz defender uma flor misteriosa,
só, na imensidade da América adormecida.


(in Trocar de Rosa, traduções de Eugénio de Andrade, Na Regra do Jogo, 1980 / original de Canto general, 1950)


III
OLHAR SOBRE A GRÉCIA

Oh lágrimas, ainda não é tempo
de acudirdes aos meus olhos,
de acudirdes aos olhos dos homens,
pálpebras, erguei-vos
da escuridão do sono, claras
ou sombrias pupilas,
olhos sem lágrimas, olhai a Grécia
crucificada em seu madeiro.
Olhai-a toda
a noite, todo o ano, todo o dia,
vertendo o sangue do seu povo,
ferindo as fontes
em seu terrível capitel de espinhos.
Vede, olhos do mundo,
o que a Grécia, a pura,
suporta, a chicotada
do mercador de escravos,
e assim de noite e ano e mês e dia
vede como se levanta a cabeça
do seu povo orgulhoso.
De cada gota
caída do martírio
cresce de novo o homem,
o pensamento tece as suas bandeiras,
a acção confirma pedra a pedra
e mão a mão
a altura do castelo.

Oh Grécia clara,
se em ti a escuridão despejou o seu saco
de estrelas negras, sabes
que em ti própria
está a claridade, que tu recebes
a noite inteira em teu regaço
até que das tuas mãos
a aurora se levante,
voo branco molhado de orvalho.
À sua luz ver-te-emos,
antiga e clara mãe dos homens,
sorrir, vitoriosa,
mostrando-nos outra vez a tua
…………………………………..........…brancura
de estátua, entre os montes.


(de As uvas e o vento, tradução de Albano Martins, Campo das Letras, 2007 / original: Las uvas y el viento, 1954)


Ode à vida

Toda a noite
com um machado
a dor me feriu,
mas o sonho
passando lavou como uma escura água
ensanguentadas pedras.
Hoje estou vivo novamente.
De novo
te levanto,
vida,
sobre os meus ombros.

Ó vida,
taça cristalina,
de súbito
enches-te
de água suja,
de vinho morto,
de agonia, de desgraças,
de pegajosas teias de aranha,
e muitos crêem
que guardarás para sempre
essa cor infernal.

Não é verdade.

Uma noite lenta passa,
passa um só minuto
e tudo muda.
Enche-se
de transparência
a taça da vida.
Um longo trabalho
nos espera.
De um só golpe nascem as pombas.
Se engendra a luz sobre a terra.
Vida, os pobres
poetas
julgaram-te amarga,
não saíram da cama
contigo
com o vento do mundo.

Sofreram os amargores
sem te procurar,
barricaram-se
num negro tugúrio
e foram-se atolando
no luto
dum solitário poço.
Não é verdade, vida,
és
bela
como a minha amada
e tens entre os seios
odor a menta.

Vida
és uma máquina plena,
felicidade, rumor
de tempestade, ternura
de delicado azeite.

Vida,
és como uma vinha:
amealhas a luz e reparte-la
em cacho transformada.

Aquele que te renega
que espere
um minuto, uma noite,
um ano curto ou longo,
que saia
da sua mentirosa solidão,
que indague e lute, junte
as suas mãos a outras mãos,
que não adopte nem proclame
a má-sorte,
que a estilhace dando-lhe
forma de muro,
como à pedra fazem os canteiros,
que a corte
e dela faça
umas calças.
A vida espera
todos aqueles
que amam
o selvagem
odor a mar e a menta
que ela tem entre os seios.


(de Odes Elementares, tradução de Luís Pignatelli, publicações Dom Quixote, 1977 / original: Odas elementales, 1954)


PARA TODOS

De repente não posso dizer-te
o que te deveria dizer,
homem, perdoa-me, saberás
ainda que não escutes as minhas palavras
que não me pus a chorar nem a dormir
e que estou contigo sem te ver
desde há muito e até ao fim.

Eu percebo que muitos pensem,
e Pablo o que faz? Estou aqui.
Se me procurares nesta rua
encontrar-me-ás com o meu violino
preparado para cantar
e para morrer.

Não é por querer deixar alguém
nem aos outros, nem a ti,
e se escutares com atenção, na chuva,
poderás ouvir
que vou e venho e me demoro.
E sabes que devo partir.

Se não se entendem as minhas palavras
não julgues que sou o que outrora fui.
Não há silêncio que não se acabe.
Quando chegar o momento, espera-me,
e que saibam todos que saio
à rua, com o meu violino.


(de Plenos Poderes, tradução de Luís Pignatelli, publicações Dom Quixote, 1975 / original: Plenos poderes, 1962)


Começo por invocar Walt Whitman

É por acção de amor ao meu país
que te reclamo, ó necessário irmão,
velho Whitman da cinzenta mão,

para que, com teu apoio extraordinário,
verso a verso, matemos de raiz
Níxon, o presidente sanguinário.

Sobre a terra não há homem feliz,
ninguém trabalha bem no planeta
se em Washington respira o seu nariz.

Pedindo ao velho bardo que me invista,
os meus deveres assumo de poeta
armado do soneto terrorista,

porque devo ditar sem pena alguma
a sentença até agora nunca vista
de fuzilar um criminoso ingente

que apesar das suas viagens para a lua
já matou na terra tanta gente,
que até foge o papel e a pena se alevanta

ao escrever o nome do maldito,
do genocida, o da Casa Branca.


(de Incitamento ao Nixonicídio e louvor da Revolução Chilena, tradução de Alexandre O’Neill, Agência Portuguesa de Revistas, 1975 / original: Incitación al nixonicidio y alabanza de la revolución chilena, 1973)