3.3.14

JULIO CORTÁZAR


A um deus desconhecido

Quem quer que sejas
não venhas já.
Os dentes do tigre misturaram-se com a semente,
chove fogo em permanência sobre capacetes de protecção
já não se sabe quando acabarão os esgares,
o desgaste de um tempo feito em pedaços.

Por te obedecermos caímos.

– A torre subia erecta, as mulheres
levavam cascavéis nas pernas, provava-se
um vinho forte, perfumado. Novas rotas
se abriam como coxas à alegre cobiça,
às quilhas insaciáveis. Glória!
A torre desafiava as medidas prudentes,
como numa festa de estrategas
era a sua própria grinalda.
O ouro, o tempo, os destinos,
o pensar, a violenta carícia, os tratados,
as agonias, as carreiras, os tributos,
rolavam como dados, com suas pintas de fogo.

Quem quer que sejas, não venhas já.
A crónica é a fábula para estes olhos tímidos
de lentes focais e bifocais, Polaroid, anti-halo,
para estas mãos com escamas de cold-cream.
Por te obedecermos caímos.

– Os professores obstinados fazem gestos de ratazana,
vomitam Górgias, patesís, anfictionias e Duns Escoto,
concílios, cânones, seringas, skaldas, trempes,
que vida descansada, os direitos do homem, Ossian,
Raimundo Lúlio, Pico, Farinata, Mio Cid, o pente
para que Melisandra penteie os seus cabelos.
É assim: preservar os legados, adorar-te nas tuas obras,
eternizar-te, a ti o relâmpago.
Fazer da tua raiva vivente um apotegma,
codificar a tua livre gargalhada.
Quem quer que sejas
não venhas já.

– A ficção cara de farinha, como se pendura no seu macaco,
o relógio pontual a arrancar-nos da cama.
Venha às duas, venha às quatro,
infelizmente temos tantos compromissos.
Quem matou Cock Robin? Por não usar
antitranspirantes, sim senhora.

Por outro lado a bomba H, o pente com música,
os detergentes, o violino eléctrico,
facilitam a passagem do tempo. Não é tão má assim
a sala de espera: alcatifada.
- Consolações, jovem antropólogo? Sortidos:
você vê-os, julga-os e leva-os.
A torre subia erecta,
mas aqui há Dramamina.

Quem quer que sejas
não venhas já.
Iríamos cuspir-te, lixo, fabricado
à nossa imagem
de náilon e algodão, Iavé, Deus meu.



(tradução minha – original de Arrimos, in Salvo el crepúsculo, edición definitiva: Alfaguara, 2009)

2.3.14



DESESPERO
(5 desenhos de ROGÉRIO RIBEIRO, num livro oferecido pelo Amadeu Baptista)


I
É impossível saber
Quantos nomes temos
Num só corpo.

Impossível também a voz
Que ama, a mão que toca,
Tudo, todos, sempre,

Alterando timbres,
Deixando suceder as cores
Constatando a impossibilidade.




II
O desequilíbrio acontece
Sempre em nós próprios
Na presença do outro,

De quem ali está, incerto,
Presença a confirmar
Ausência. O vazio

Alheio a nós, do outro lado
Do desamparo. E o corpo
A não saber chegar ao chão.


III
A ânsia de alguma coisa,
Nada, a sede de ter
Um rosto visível. Não

O quase limite de estarmos
Todos
Debaixo do mesmo céu,

Dentro de uma esquadria
Demasiado exígua. Não
Apenas a sobrevivência.



IV
Não perceber, não reconhecer
Quem, quantos de nós
Estamos vivos. Desejar

A forma do próprio rosto
Ainda – até quando? –,
Para não a perder. Esticar

Os braços
Como quem grita sabendo
Que nunca será ouvido.



V
Ainda o rosto, ainda
A forma dele
Simplificada à margem

De uma fuga ou
Vislumbre de ausência.
O nada de um corpo

É não ser visto. Uma
E outra são o mesmo,
Desconexas.


Desespero, 2003
Acrílico s/ papel
56 cm X 76 cm
(reproduzidos a partir de Rogério Ribeiro / Desenho, Galeria Municipal de Montemor-o-Novo, 2005)