11.2.05



ARTHUR MILLER

NOTA DO AUTOR

Uma vista de olhos a Os Inadaptados mostra que está escrito duma forma pouco comum, nem de romance, nem de peça de teatro, nem de argumento cinematográfico. Talvez se justifique uma palavra de explicação.
É uma história concebida como um filme e todas as suas palavras têm o fim de indicar à câmara de filmar o que deve ver e as actores o que têm a dizer. É, no entanto, a espécie de narrativa que a forma telegráfica, de diagrama, do argumento cinematográfico não pode transmitir, porque o seu sentido depende tanto dos cambiantes de carácter e de lugar como da intríga. Tornou-se, por conseguinte, necessário fazer mais do que indicar apenas o que acontece; criar por meio das palavras as emoções que o filme acabado deveria possuir. Foi como se já existisse um filme e o escritor estivesse a recriar a plenitude dos seus efeitos através da linguagem, de modo que, como resultado duma tentativa puramente funcional de tornar clara para outros a visão dum filme, de um filme que apenas existisse ainda na mente do escritor, lhe houvesse sido sugerida por si mesma uma forma de ficção, uma forma híbrida se quiserem, mas uma forma que me parece ter vigorosas possibilidades de reflectir a existência comtemporânea. O cinema, a forma de arte mais difundida pela terra, criou, com vontade ou sem ela, um modo particular de ver a vida, e as suas rápidas transições, a súbita junção de imagens díspares, o seu efeito de documentação inevitável em fotografia, a sua economia de narração do argumento e a sua concentração na acção muda, infiltraram-se no romance e na peça de teatro - especialmente nesta última - sem que o factoseja confessado ou, por vezes, sem que seja de modo nenhum conscientemente realizado.
Os Inadaptados utiliza declaradamente as perspectivas do filme, de forma a criar uma ficção que possa ter uma imediação peculiar da imagem e as possibilidades de reflexão da palavra escrita.

(in Os Inadaptados, tradução de Sousa Victorino, Livros do Brasil, 1961?)


[uma evocação muito interessante no novo endereço da Rua da Judiaria]
ALBERTO DE LACERDA

A sombra que vem depois do sol
É habitada
É uma sombra feliz

A sombra que sucede à luz mui forte
É grávida de cor afirmativa
Estabiliza os caudais
Da imaginação
Pinta seus recantos obscuros
Reconcilia tudo

Austin
15 de Maio 75

10.2.05

JEAN-CLARENCE LAMBERT

"FRAGMENTOS E LEGENDAS"

As palavras por vezes refugiam-se
no interior da boca
por detrás dos dentes

Enquanto esperas, diz ele, toma atenção
às coisas que não tiveram começo
a isso que é tão negro como o coração.

Estamos em desacordo, eu e a minha sombra.

Em todas as coisas faço parte do abismo.

Uma temporada fora do inferno,
sob as estrelas frias.

Movimentos impecáveis em direcção ao inacessível.

Transportar o que sobra dos acontecimentos para outro
presente, se possível anterior.

E tudo isto acontece na fenda entre a questão e a resposta.

(tradução de Casimiro de Brito, in Poesia em Lisboa 2000, Casa Fernando Pessoa e P.E.N. Clube Português, 2000)

9.2.05

VITORINO NEMÉSIO

SILÊNCIO

Silêncio é peso de Deus.
Levantar a voz começa
A pôr o homem sozinho
Como o morto numa essa.

Só o poeta, calado,
Écomo a espada dura
E o juízo formado.
Sua mão, no joelho,
Dá a medida pura
De um sonho muito velho.

Não dizer nada!
Ter um fato de lã
E a mão nele, apanhada
A maçã
Da promessa...
Mão de meu tio antigo,
Era essa, era essa
Que não trago comigo!

(poema inicial de Nem Toda a Noite a Vida, 1952)

8.2.05

POPULAR

Vi certa menina
Com seus caracóis,
Catando os lençóis
Ao Rei Salomão.
O pai Maranhão
Com todo o capricho
Foi matar o bicho
Ao Cais-do-Sodré.
Muito pontapé
Levou o rapaz
Que traz no cabaz
Palha de tabúa;
Passeiam p'la rua
Peraltas aos centos
Engolindo ventos
Em lugar d'almoço.
Namora o meu moço
Aquela menina
Que mora à esquina
Do Arco-do-Cego.
Aquêle galego
Que vende melões
Rompeu os calções
Com vento do sul.
Aquêle taful
Comendo ròsbife;
Passear de esquife
É grande descôco!
Escôvas de côco
São convenientes
P'ra limpar os dentes
De quem tem ramela;
Caldo da panela
É bom alimento,
Se lhe dá o vento
Não cai de maduro.
Lá no Val-Escuro
Quebrei o nariz;
Isso não se diz
Deante de gente;
Ó senhor Vicente
Não mangue comigo;
Lá dei no umbigo
Uma canelada;
Está gente parada
Por essas travessas,
Sentada em tripeças
Tocando zabumba.
Zumba, catatumba
Zás traz catrapaz.
Os canos de gás
Cheram muito a pez;
O porco montês
Tem grande focinho;
Quem não bebe vinho
Mal sabe o que vai;
Rapazes sem pai
Ficam malcriados;
Seis vinténs safados,
Ninguém os aceita;
É boa receita
Para quebraduras
Pôr-se ligaduras
De teia de aranha.
Espanhóis, de Espanha,
Franceses, de França
Armam contradança
Lá nos Pirineus.
Pois então... Adeus,
Findou a cantiga
Da tal rapariga
Com seus caracóis.

(transcrito por Guilherme Felgueiras no artigo Anfíguris Populares, in Portvcale nº 43 - Janeiro-Fevereiro de 1935)

6.2.05

[outros melros XXIII]

ALBANO MARTINS

Há um melro que faz
o ninho na minha memória. Ouço-o
agora. Canta
a flor das giestas
e da cerejeira. Traz,
emoldurados no bico,
os meus dezoito anos

(de Os Remos Escaldantes, 1983)