[outros melros XLIII]
ANÓNIMO CELTA
O CANTO DO MELRO
Da ponta do bico brilhante e amarelo
Da ave pequena soltou-se um trinado.
De dentro de um ramo de folhas doiradas
O melro lança o seu cantar pelas águas do lago.
(tradução de José Domingos Morais, in Rosa do Mundo - 2001 poemas para o futuro, Assírio & Alvim, 2001)
5.10.06
4.10.06
[decorreu, entre 24 e 30 de Setembro, no concelho de Cascais, uma Semana Cultural Macedónia. No Sábado, teve lugar um encontro entre poetas macedónios e portugueses, com leitura de poemas nas duas línguas. Ficam aqui alguns dos poemas lidos]
ANA HATHERLY
A história do mundo
A história do mundo
É uma autobiografia inventada
É a história
De um Paraíso desencontrado
De um velho-novo-mundo
Para sempre ultrajado
Pela enorme cintilação do oiro
Ah!
Como é desigual
A viagem da descoberta!
Entre a cópia e a falta
Ante o eterno vexame do despenho
Uma pergunta maléfica nos assalta:
Que fazer?
A alma
Não tem que fazer nada
Dizia um célebre quietista?
MATEJA MATEVSKI
O nascimento da tragédia
Quando Aristóteles estabeleceu o verdadeiro estado
das coisas
e determinou como transformar o claro em obscuro
quando o riso se tornou num esgar
e a palavra numa espada
a dor já existia
Porque havia muito a mão tinha sido modelada como uma mão
e a palavra como uma palavra
para expulsar o mal do mundo
Mas o mal estava presente
mesmo entre as regras mais exactas
e as acções mais inevitáveis
E Dionísio embriagado de vinho e de sol
havia muito que brandia o falo e a espada
forçando ao canto as feras esfoladas
Assim tinha nascido a canção
Enquanto as mulheres se cobriam a si mesmas de negro
enquanto as torres ardiam e os navios eram afundados
e os cavalos calcavam os frutos da terra
e o coração murchava como uma maçã
e o sangue abandonava o corpo
Isso pouco tinha a ver com heroísmo
ou com a dor da solidão ou com as lágrimas em caminhos desertos
contudo mesmo assim o velho filósofo aplicaria
as elegantes regras do jogo
a tais selvajarias
enquanto a audiência continua
aplaudindo a morte
CASIMIRO DE BRITO
Três haiku
Diante do lago,
a beleza. Como se homens
não existissem
Lago de Ohrid -
até no seio da morte
a natureza sorri
Para além do lago
as terras parecem felizes -
os homens em guerra
a beleza. Como se homens
não existissem
Lago de Ohrid -
até no seio da morte
a natureza sorri
Para além do lago
as terras parecem felizes -
os homens em guerra
VERA CHEJKOVSKA
Psycho
é isso um enlace de linhas direitas ortodoxas e de não
ortodoxas linhas curvas?
admito um programa semelhante para os meus desenhos
em miniatura. e.g., deixar que os bichos da seda
sejam engendrados pelos genitais do diabo e pelo sémen de Deus,
que eles mesmos expelem. deixá-los ser verdadeiros
pequenos demiurgos, abraxas omnipresentes na minha
elocução. De modo a apresentar a sua mobilidade
indubitável nas fronteiras do determinismo.
ou: a luz é um múltiplo ferrão de vespa e a escuridão
uma miríade de formigas. como um espécime adicional da
pré-essência, da sabedoria mítica, que deve
continuamente desenvolver até agora. até mim.
Porém, a consciência de alguns saltos inesperados...
imprevisíveis como pétalas de rosa em situações
banais...
PAULO TEIXEIRA
Taças
Derramadas foram as taças sobre a Terra.
Estremeci do seu murmúrio primeiro,
do seu frémito depois, da sua convulsão.
As palavras que ouvia eram como calhaus
rolados, seixos que dão à praia pela manhã.
Entram na vossa alma secretamente.
Chorei por vós nesse dia. Piedade.
Porque amei vossas pegadas e as cicatrizes
na vossa carne, o tão calado testemunho.
Perguntareis: como amar as pegadas
de quem já não vive?
Amei o que foi vosso um dia. Por isso chorei.
ZORAN ANCEVSKI
Leitura
Eu gaguejo perante
os p-p-portões da Babilónia
quero dizer
não consigo falar
A minha voz quebra-se
multiplica-se
sob a minha língua
as palavras reproduzem-se
E pergunto-me
fui eu que proferi esta palavra
ou foi ela
sempre nos iludiremos mutuamente
pois temos a eternidade
desde que a palavra foge
desde a nossa primeira tagarela-babel
Que esforço para nos reconhecermos
nesta infinidade de espelhos
no ventre deste mun-
do vago, concha de ostra
a p-p-pre-pre-pre-pre-
existência do eco.
VASCO GRAÇA MOURA
o caminho de ohrid
do alto das muralhas de ohrid onde
acorrera aos gritos desvairados dos vigias,
o rei samuel avistou o seu exército desfigurado,
arrastando-se entre as montanhas da macedónia.
aos catorze mil homens tinham sido
arrancados os olhos por ordem do imperador
e a um em cada cem mandara ele, basílio II,
fosse poupado um olho para conduzirem o regresso
dessa manada cega. depois de atravessarem altas neves
vinham-se agora despenhando para o lago,
tropeçando, agarrados uns aos outros,
a tortura espelhada nas contorções das faces,
o sangue a empapar-lhes os andrajos. e o rei,
tomado pela angústia, deu um grito de dor e morreu
no alto da muralha sobre a colina e os seus bosques e pomares
que o lago placidamente reflectia.
nesse instante compreendeu como era ambígua
a força cega do destino e em nenhum mosteiro
podia a iconostase explicar-lhe esse cruel mistério:
os santos, com feições dos retratos do fayoum,
entre as chamas trémulas emudeciam
nos seus frescos e as vozes dos jovens monges,
no seu canto austero e imperturbado,
elevavam uma grave primavera na penumbra.
(os poemas dos autores macedónios foram traduzido por Rute Mota, a partir de versões em inglês)
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