30.12.08

RUI TAVARES

(...) Descobrem que já eram amigos antes de se conhecerem. (...)

(in Olímpio, Diatribe, 2008)

27.12.08

ANA HATHERLY


HISTÓRIA DA MENINA LOUCA


Procuraram toda a casa, toda a terra,
Ninguém a achava.
Ela estava no telhado atrás da chaminé,
Olhava as estrelas e cantava.
Estava tão feliz e sossegada!
Olhava as estrelas e cantava.

Meu Deus, está louca!
Vamos levá-la.

Estava tão feliz!
Olhava as estrelas e cantava...

***

Dai-me, Senhor, um limite para a ambição,
Que a desmedida é grande impiedade!

Não se saber aonde se acaba
E até onde podemos nós sonhar...
Que, mesmo no sonho,
Eu quero me encontrar.

Se assim não fora,
Não poderia
Crer e amar.

***

A minha vida é poética:
Paira entre a vaga mentira e a realidade.

O amor me acontece
Como as folhas às árvores,
E tão singularmente,
Que já nem sei se é natural à árvore ter folhas
Ou estar nua...

(de Um Ritmo Perdido, edição da Autora, 1958)


O SEXTO SENTIDO

Estamos aqui
Em estado de liberdade
Condicionada pela enorme filáucia do próximo
Que um poeta desconhecido confirmou
Quando disse:
O sexo existe
Vem da palavra six
Igual a sexto sentido
Que é feminino

E acrescentou:
A maçã
É para ser comida

(de A Neo-Penélope, &etc, 2007)
50 Anos.



[especialmente a pensar neste blogue]

GEORGE STEINER

(…)
A Europa é feita de cafetarias, de cafés. Estes vão da cafetaria preferida de Pessoa, em Lisboa, aos cafés de Odessa frequentados pelos gangsters de Isaac Babel. Vão dos cafés de Copenhaga, onde Kierkegaard passava nos seus passeios concentrados, aos balcões de Palermo. Não há cafés antigos ou definidores em Moscovo, que é já um subúrbio da Ásia. Poucos em Inglaterra, após um breve período em que estiveram na moda, no século XVIII. Nenhuns na América do Norte, para lá do posto avançado galicano de Nova Orleães. Desenhe-se o mapa das cafetarias e obter-se-á um dos marcadores essenciais da «ideia de Europa».
O café é um local de entrevistas e conspirações, de debates intelectuais e mexericos, para o flâneur e o poeta ou metafísico debruçado sobre o bloco de apontamentos. Aberto a todos, é todavia um clube, uma franco-maçonaria de reconhecimento político ou artístico-literário e presença programática. Uma chávena de café, um copo de vinho, um chá com rum assegura um local onde trabalhar, sonhar, jogar xadrez ou simplesmente permanecer aquecido durante todo o dia. É o clube dos espirituosos e a posterestante dos sem-abrigo. Na Milão de Stendhal, na Veneza de Casanova, na Paris de Baudelaire, o café albergava o que existia de oposição política, de liberalismo clandestino. Três cafés principais da Viena imperial e entre as guerras forneceram a agora, o locus da eloquência e da rivalidade, a escolas adversárias de estética e economia política, de psicanálise e filosofia. Quem desejasse conhecer Freud ou Karl Kraus, Musil ou Carnap, sabia precisamente em que café procurar, a que Stammtisch tomar lugar. Danton e Robespierre encontraram-se uma última vez no Procope. Quando as luzes se apagaram na Europa, em Agosto de 1914, Jaurès foi assassinado num café. Num café de Genebra, Lenine escreveu o seu tratado sobre empiriocriticismo e jogou xadrez com Trotsky.
Note-se as diferenças ontológicas. Um pub inglês e um bar irlandês têm a sua própria aura e mitologias. O que seria da literatura irlandesa sem os bares de Dublin? Onde, a não existir o Museum Tavern, teria o Dr. Watson encontrado Sherlock Holmes? Mas estes estabelecimentos não são cafés. Não têm mesas de xadrez, não há jornais à disposição dos clientes, nos seus suportes próprios. Só muito recentemente o próprio café se tornou hábito público na Grã-Bretanha, e mantém o seu halo italiano. O bar americano desempenha um papel vital na literatura americana e em Eros, no carisma icónico de Scott Fitzgerald e Humphrey Bogart. A história do jazz é inseparável dele. Mas o bar americano é um santuário de luzes desmaiadas, muitas vezes de escuridão. Vibra com música, muitas vezes ensurdecedora. A sua sociologia e o seu tecido psicológico são permeados pela sexualidade, pela presença – desejada, sonhada ou real – de mulheres. Ninguém redige tomos fenomenológicos à mesa de um bar americano (cf. Sartre). As bebidas têm de ser renovadas, se o cliente quiser continuar a ser desejado. Há «seguranças» que expulsam os indesejáveis. Cada uma destas características define uma ética radicalmente diferente daquela do Café Central ou do Deux Magots ou do Florian. «Haverá mitologia enquanto existirem pedintes», declarou Walter Benjamin, um connaisseur apaixonado e peregrino de cafés. Enquanto existirem cafetarias, a «ideia de Europa» terá conteúdo.
(…)

(excerto de A Ideia de Europa, tradução de Maria de Fátima St. Aubyn, Gradiva, 2005)

26.12.08

HAROLD PINTER

Natal


Escolhe o aperitivo do bebé para tomar
Numa corneta acústica.
A privação enfurece: pelo menos
Alegra-te com o teu cativeiro.

Dá limões ao Maurice.
Partiu a louça,
Feito parvo no sótão,
Empanturrando-se de biscoitos e azeitonas.

Esta é uma família feliz.
Vem, canta o porto,
Ea as noites enfardando caldeirada,
Vamos infiltrar-nos na casa ao lado,
Fazer outra festa.

1950


Tudo isso

Tudo isso fiz
E, ao fazer, menti.
E tudo isso que escondi
Fingi estar morto.

Mas tudo isso que escondi
Foi sempre dito,
Mas, escondido, espiava
O bem de outrem.

E tudo isso levei
À certa para a cama
E, na cama, disse
Aquilo que fiz

A tudo isso que chorava
Por trás da minha cabeça
E, ao chorar, morria
E não morreu.

1970

(tradução de Jorge Silva Melo e Francisco Frazão, in Várias Vozes, edições Quasi, 2006)

25.12.08

MÁRIO GARCIA, S. J.

Hino das Matinas do Natal


Traz
a sentinela,
à raiz do vento,
a gruta.

A ave, a neve,
dilata a madrugada.

A luz
difunde
a palma.

O odor do pinheiro
entra na água,
impregna o ar.

Dentro da nuvem, a pomba.

O ovo da criação,
a semente,
nasce.

O fogo
clama
o coração.

A nova eternidade
começa no poema,
por um sinal de amor.



Hino das Segundas Vésperas de Natal

Menino
quase sozinho
no seio da Virgem Mãe,
dá-me
teu sorriso
palhinha do nada.

Traz
numa carícia agora
o luar,
a mão divina
sentinela luz
da noite.

Para ti
nossa canção
se evola,
nostálgica palavra
lentamente sendo
vida.

Flor de cinza
o nosso coração
alado,
ao teu presépio
na raiz do vento
voa.

Deus
à madrugada
leva o berço,
silêncio
em que se aninha o dia.

Estrela do céu
a lágrima do mundo
abrasa em nós,
mar
do infinito
amor.

(de Roma, Vieira, Veneza, Autores de Braga, 1998)

24.12.08

JOSÉ TOLENTINO MENDONÇA

Nascemos, nascemos, nascemos



Enganam-se os que pensam que só nascemos uma vez.

Para quem quiser ver a vida está cheia de nascimentos.

Nascemos muitas vezes ao longo da infância
quando os olhos se abrem em espanto e alegria.

Nascemos nas viagens sem mapa que a juventude arrisca.

Nascemos na sementeira da vida adulta,
entre invernos e primaveras maturando
a misteriosa transformação que coloca na haste a flor
e dentro da flor o perfume do fruto.

Nascemos muitas vezes naquela idade
onde os trabalhos não cessam, mas reconciliam-se
com laços interiores e caminhos adiados.


Enganam-se os que pensam que só nascemos uma vez.


Nascemos quando nos descobrimos amados e capazes de amar.

Nascemos no entusiasmo do riso e na noite de algumas lágrimas.

Nascemos na prece e no dom.

Nascemos no perdão e no confronto.

Nascemos em silêncio ou iluminados por uma palavra.

Nascemos na tarefa e na partilha.

Nascemos nos gestos ou para lá dos gestos.

Nascemos dentro de nós e no coração de Deus.


O que Jesus nos diz é: "Também tu podes nascer",
pois nós nascemos, nascemos, nascemos.


(in boletim da Agência Ecclesia, 23/12/2008)
[muita pressa e pouco amor]

VITORINO NEMÉSIO

NATAL CHIQUE


Percorro o dia, que esmorece
Nas ruas cheias de rumor;
Na minha alma vã desaparece
Na muita pressa e pouco amor.

Hoje é Natal. Comprei um anjo,
Dos que anunciam no jornal;
Mas houve um etéreo desarranjo
E o efeito em casa caiu mal

Valeu-me um príncipe esfarrapado
A quem dão coroas no meio disto,
Um moço doente, desanimado…
Só esse pobre me pareceu Cristo.

(de O Pão e a Culpa, 1955)

23.12.08

JOSÉ AUGUSTO MOURÃO

Salmo de advento



rasgue-se o céu, o teu olhar nos cubra
rodem os portais esquecidos e as sebes

secaram de excessivas as fontes do silêncio
só o desejo sai ao mar com algum lume a bordo,

a mais estão as luzes alcandoradas
se para apagar as brasas deste chão se arvoram.

desçam os teus barcos os rios do amargor
cegam-nos de evidência pântanos e vórtices

exorcizemos a impostura da língua
e as palavras amestradas que não andam.

dá-nos o dom do seminal, não do sacrifício
que até os deuses compra e a nós desculpa,

baste à vida como cais o limiar
e a intensidade dos afectos que responda à Voz

altere-nos o largo do dom e da misericórdia
que o rocio da noite que é a esperança nos afague.

rasgue-se o tempo e o teu dom nos ritme
na dobra do Evangelho vigiamos: vem!.

daremos a esta hora o nome: Expectação
e a noite e o sal em comum partilharemos.

a sentinela que precede a luz e a epifania
nos disponha a viver na noite vendo o dia.

fique-nos da tua passagem o traço e a cinza
e a crença de que o vazio é prenhe e habitado.

de apurar o ouvido e os afectos
se pressente a nascente só da fé sabida

se perdemos a memória das feridas
como aguardaremos a face da justiça que caminha?

confirme o teu Anjo os vestígios
de mundos que os batedores do sopro prenunciam,

que a flor da amendoeira aqueça esta vigília
e preludie o fim do inverno e a crueldade,

entremos no Jardim como num barco
hão-de levar ao Rosto os poços visitados.

(de Declinações o Nome e a forma, DL n.º 205863/04, 2004)



[a propósito, ver também este post de José Leitão]

22.12.08

ARTUR PORTELA

25


Desmoronavam-se e choravam gente.
Caíam-lhes, dos agora muitos olhos que tinham, muitas pessoas.
Lentamente se despenhavam de todos aqueles olhos que eram de vidro partido mais pessoas do que todas quantas ele jamais vira.
Achou-se a cair com elas, a cair entre elas.
Sendo imensa, embora mansa e vagarosa, quase meticulosa, a tristeza de todos.
Uma tristeza feita de espanto, desconcerto e desilusão.
Angústia era a sua por os ver assim.
Enquanto lentamente caíam.
Contavam, enquanto caíam, uns aos outros, quem eram, o que faziam, o que fariam essa mesma tarde se não fossem morrer dali a nada, e o que fariam naquele ano.
Os que estavam caindo em seu redor espantaram-se de o ver ali, e assim, naquele propósito de queda, levando um chapéu, que não era uso.
E não seria, sentiu ele, só isso, porque todos o olhavam de uma forma assim a modos que culpabilizadora, mas contida.
Além de que tinham de cuidadosamente cair, para não chocarem uns com os outros, e assim inutilmente se magoarem antes de morrer.
E, sempre a cair, mútua e muito polidamente se ajudavam, caia por aí que eu caio por aqui, cuidado que vem mesmo este senhor a cair sobre si, com licença, muito obrigado.
Ele só pensava numa coisa: a fome, que não me matou até hoje, sobreviver-me-á?

(de A ração do céu, editorial Notícias, 2001 – Outras Narrativas)

21.12.08

PEDRO GIL-PEDRO

Rodam devagar as pás do silêncio
como delas manasse um abismo suado,

mas sobre a matriz da neve pendem os bordões do fogo.

de longe veio o declínio da esteva – um círculo fechado
por enigmas.

em breve

haverá um halo de germinação nos açudes e
exausta a poda um arado de novo em desvario.

diante do inverno

movem-se ainda as pás da agonia
apesar dos setenta selos pregados ao sono.

(de animais cheios de movimento no inverno, Quasi edições, 2002 - Uma existência de papel)

20.12.08

MANUEL DA SILVA RAMOS

(…)
- E a sua vida? Ainda não sei nada de si… Diga-me, o que é a sua vida?
- A minha vida são os meus livros. As palavras que conduzo. As situações que rego. Os homens que invento para os outros homens. As mulheres que nunca consegui encontrar para o corpo de acção, para o espírito das palavras. Às vezes ando quinze dias atrás duma mulher que encontro casualmente na rua, a observá-la, a segui-la, até casa, até ao emprego, para lhe fixar os mínimos (gloriosos) pormenores para depois os lançar ao papel como um osso a um cão. Mas acabo sempre por desistir porque nunca conseguiria reproduzir-me como uma fotografia ou uma radiografia. Os meus livros não são um guia automobilístico nem o roteiro de uma cidade. Estão abandonados no sangue até que deles participe todo o mundo. E às vezes esqueço-me de viver a minha própria vida. Sim, a minha vida é um veiculo que se alimenta de sol em vez de gasolina e que anda só em sentido contrario…
- Porque escreve então?
Pergunta antiga, descubro-me no Egipto há milhares de anos rente ao Nilo, os dedos na terra, um sorriso na crista da boca, o sol levando-me os olhos. Sempre a pergunta inutil. Agora na boca translúcida de Apília. Apília, quando colhíamos morangos ao nascer dos dias egípcios e depois cansados nos deitávamos, tu ao comprido, eu com a cabeça nas tuas ancas comendo os morangos que escorregavam para as tuas pernas até aquecerem na nossa respiração, que se ia evaporando.
- Porque não sei falar…
(…)

(excerto de Os Três Seios de Novélia, 1969)

19.12.08

ERNESTO GRASSI

(…) As condições biográficas do autor de uma obra de arte nada nos revelam do processo artístico da sua composição, pois que as vivências «pessoais» do poeta não são diferentes, na maioria das vezes, das que são comuns aos seus contemporâneos e próximos que não foram capazes de extrair delas um sentido universal. Embora pareça contraditório, assim é: a personalidade que através da obra de arte nos fala é, sem dúvida, a de um indivíduo que se move em determinado condicionamento histórico, mas é sobretudo a encarnação de uma força impessoal cujo fito é configurar o objectivo e universal. Daí a impressão de um estranho anonimato no qual, todavia, se patenteia algo de muito pessoal, que no projecto criador transmuta e anula o meio ambiente e tem capacidade para tanto porque as suas raízes atingem o fundo último do ser, do indizível ignoto. É decerto este o sentido das palavras de Rimbaud:

(excerto de A Arte e o Mito, tradução de Manuela Pinto dos Santos, sem data – LBL Enciclopédia)
ARTHUR RIMBAUD

(…) A inteligência universal sempre arremessou as suas ideias com naturalidade; os homens recolhiam uma parte desses frutos do cérebro: agia-se em conformidade, escreviam-se livros: tal era o sentido das coisas, o homem não se trabalhando, não estando ainda desperto ou não mergulhando na plenitude do grande sonho. Funcionários, escreventes: autor, criador, poeta, esse homem nunca existiu!
O primeiro estudo para o homem que quer ser poeta é o próprio conhecimento, por inteiro; ele procura a sua alma, inspecciona-a, experimenta-a, apreende-a. Desde que a sabe, deve cultivá-la; isso parece simples: em todo o cérebro se dá um desenvolvimento natural; tantos egoístas se proclamam autores; muitos outros atribuem-se o seu próprio progresso intelectual! – Mas do que se trata é de tornar a alma monstruosa: a exemplo dos comprachicos, pois! Imagine um homem implantando e cultivando verrugas no seu próprio rosto.
(…)

(excerto de carta a Paul Demeny, datada de 15 de Maio de 1871, in Cartas do Visionário e mais nove poemas, tradução de Ângelo Novo, Fora do Texto, 1995)

18.12.08

AMADEU BAPTISTA

Ternura


A magnífica
refeição que o tratador
dá ao cavalo:
aveia,

duas dúzias de cenouras
e uma maçã vermelha.
Devolve-lhe o cavalo
a afeição

com um roçagar
leve da garupa.
Todo ele afecto,
a derramar ternura.

(de Os Cavalos a Correr, Trinta por uma linha, 2008 - recolhido no Porosidade Etérea)
Foram lançados recentemente mais dois novos livros de Amadeu Baptista:





















Os Cavalos a Correr,
livro de poemas para crianças ilustrado por Estela Baptista Costa
e editado pela editora Trinta por uma linha

e

Açougue
(XVI Prémio de Poesia Espiral Maior),
editado na Galiza pela Espiral Maior.

(entretanto, há notícia de que mais livros do Amadeu estão para chegar em breve)

16.12.08

EDWARD HOPPER


Empty Room, 1963
óleo sobre tela
Colecção particular



MÁRIO AVELAR

Promenade – Sol num quarto vazio
(Edward Hopper)


Às vezes sento-me na
sala a ouvir Coltrane,
my favorite things… O crepúsculo

da memória esbate-se
em ténues raios de
luz nos ecos desses dias:

Não vás ao mar, Tóin’… O tédio
dos sessenta, procissões,
indolentes romarias…

cheiro a fritos, farturas…
Nostalgia? Toca a
banda no coreto… Que

vontade de uivar, de
correr, de fugir p’ra longe
desse imenso torpor.

(de Pela mão de Mussorgski numa galeria com anjos, Black Sun editores, 2000)

15.12.08

JOSÉ TOLENTINO MENDONÇA

A noite abre meus olhos


Caminhei sempre para ti sobre o mar encrespado
na constelação onde os tremoceiros estendem
rondas de aço e charcos
no seu extremo azulado

Ferrugens cintilam no mundo,
atravessei a corrente
unicamente às escuras
construí minha casa na duração
de obscuras línguas de fogo, de lianas, de líquenes

A aurora para a qual todos se voltam
leva meu barco da porta entreaberta

o amor é uma noite a que se chega só.

(de A Estrada Branca, 2005)

14.12.08

SANDRO PENNA

As Portas do mundo não sabem
que lá fora a chuva as procura.
As procura. As procura. Paciente
afasta-se, regressa. A luz
não sabe que há chuva. A chuva
não sabe que há luz. As portas,
as portas do mundo estão fechadas;
fechadas para a chuva,
fechadas para a luz.

(in No brando rumor da vida, tradução de Maria Jorge Vilar de Figueiredo, Assírio & Alvim, 2003 – original de Poemas Inéditos (1927-1955))

13.12.08

CHARLES SIMIC

O tempo dos poetas menores está a chegar. Adeus Whitman, Dickinson, Frost. Bem-vindos vós cuja fama nunca passará da família mais chegada, e talvez um ou dois amigos íntimos reunidos depois do jantar à volta de um jarrão de rude vinho tinto... enquanto as crianças adormecem e se queixam do barulho que fazes ao vasculhar os armários à procura dos teu poemas antigos, com medo que a tua mulher os tenha deitado fora na limpeza da última primavera.
Neva, diz alguém que espreitou a noite escura e que, depois, também se volta para ti quando te preparas para ler, de uma forma algo teatral e uma face que cora, o longo e tortuoso poema de amor cuja estrofe final (que não sabes) falta sem remissão.

- segundo Aleksandar Ristóvič

(in Previsão de tempo para utopia e arredores, tradução de José Alberto Oliveira, Assírio & Alvim, 2002 – documenta poetica)

12.12.08

CASIMIRO DE BRITO

481

Branco no branco, cantou
Bashô. Despes o vestido,
dispo o teu corpo.
A tua sombra na parede
branca. Sorris.
Apagas a luz.
Sabes que a tela da tua pele
me vai iluminar.
Debruças-te no meu peito:
sabes que o teu hálito me vai
acender. Branco
no branco.
Derramados
um no outro. Quem é luz?
Quem é sombra?
A cotovia
começa a cantar.

(de 69 Poemas de Amor, 4 Águas editora, 2008)

Hoje, pelas 18:00,
na Livraria Bulhosa de Entrecampos (Campo Grande, 10-B), em Lisboa,
será apresentada a antologia 69 POEMAS DE AMOR de Casimiro de Brito,
editada pela 4 Águas Editora.

A antologia será apresentada por Maria João Cantinho
e serão lidos poemas por várias personalidades,
seguindo-se um beberete.



«Sou essencialmente um poeta do amor. Talvez porque pense que o amor é inesgotável — embora possa naturalmente ter outros nomes. A própria morte, na minha poesia, significa “amor” — porque, na minha poesia, à morte, que é tão recorrente, não é mais nem menos do que mudança, transformação. Disse-o Camões.»

(Excerto da entrevista concedida por Casimiro de Brito ao suplemento Caderno de Artes, do semanário Postal do Algarve, 27 de Novembro de 2008)

11.12.08

JOSÉ MIGUEL SILVA

NON, OU A VÃ GLÓRIA DE MANDAR
- MANOEL DE OLIVEIRA (1990)


Diz o povo e com razão que no perder
é que está o ganho. Para alguma coisa
somos portugueses, «os de cabelo castanho»,
e que seria de nós se as lágrimas, os lenços

nos faltassem? Povos mais felizes alimentam-se
de lucros, de famas, de vitórias. Nós não,
preferimos o lamento, a beleza moral
do quase ter, do quase lá, do quase nunca.

A bola no poste é o nosso emblema, e o nosso
patriotismo exprime-se na derrota. Pois
no coração de cada português lateja a evidência
de que só no fracasso se alcança o verdadeiro

sabor de ser homem. A vitória é uma patranha
em que só caem os parvos, os que não sabem,
como nós sabemos, que não há nada a ganhar,
que todos os triunfos são triunfos da morte.

Devemos então assumir como desígnio nacional
a ambição de perder cada vez mais, cada vez melhor,
e fazer o possível por tirar proveito dessa situação,
tão favorável, que o fracasso nos confere.

Porque só quem aprendeu a amar a derrota,
a fazê-la sua, a lutar por ela, poderá desatrelar-se
do tandem de agonias que os antigos figuravam
sob o nome de temor e esperança.

(de Movimentos no Escuro, Relógio d’Água editores, 2005)

10.12.08

SEAMUS HEANEY

Da república da consciência


I

Ao aterrar na república da consciência
o silêncio era tal quando os motores pararam
que ouvi um maçarico, bem alto sobre a pista.
No balcão da imigração, o funcionário
era um velho que puxou de uma carteira
do seu saco artesanal, e me mostrou
uma fotografia do meu avô.
A mulher na alfândega quis que eu declarasse
as palavras ancestrais das nossas curas
e feitiços contra a mudez e o mau-olhado.
Nem um carregador, intérprete ou táxi.
Cada um transportava o seu fardo, e os sintomas
de insinuante privilégio em breve desapareciam.


II

Por lá, o nevoeiro é um augúrio temido,
mas o relâmpago promete o bem
universal, e os pais penduram bebés
nas árvores durante as trovoadas.
O sal é um mineral precioso.
E as conchas levam-se ao ouvido quando nasce
ou morre alguém. A base de toda e qualquer
tinta e pigmento é a água do mar.
o seu símbolo sagrado é um barco
estilizado. A vela é uma orelha, o mastro
uma caneta inclinada, o casco a forma
de uma boca, a quilha um olho aberto.
Ao tomarem posse, os dirigentes públicos
juram respeitar as leis não escritas, e choram
para expiar a presunção de ter um cargo –
e para afirmar a sua confiança
em que toda a vida nasceu das lágrimas
choradas pelo deus dos céus após sonhar
que a sua solidão não tinha fim.


III

Regressei dessa frugal república
de mãos a abanar, pois a mulher da alfândega
insistiu que a única mercadoria
que eu podia trazer era eu próprio.
O velho ergueu-se e olhou-me o rosto fixamente
e disse ser assim o reconhecimento
oficial da minha nacionalidade
dupla. Desejou pois ao regressar a casa
eu me considerasse representante
daquele país, e em seu nome falasse
na minha própria língua. As suas embaixadas
encontravam-se, disse, por todo o lado,
mas actuavam de forma independente,
e nenhum embaixador jamais seria
dispensado das suas funções.

(in Da Terra à Luz – Poemas 1966-1987, tradução de Rui Carvalho Homem, Relógio d’Água editores, 1997 – original de The Haw Lantern, 1987)

9.12.08

JOSÉ AGOSTINHO BAPTISTA

LEITOR II


Deixa que se fechem as pálpebras que já não
dominas,
enquanto o lobo uiva atrás das minhas costas.

Sentes a aragem que traz do sul um aroma de
acácias?
Vês a igreja, o adro, e na falésia distante,
entre as brumas,
os senhores das inaudíveis flautas que anunciam
a alba?

Aproxima-te então,
e toca-me ternamente no ombro,
para que se abram enfim os gladíolos da minha
pele à deriva,
no meio da terra.

(de Filho Pródigo, Assírio & Alvim, 2008)

8.12.08

ADÉLIA PRADO

Salve Rainha


A melancolia ameaça.
Queria ficar alegre
sem precisar escrever
sem pensar
que labor de abelhas
e vôo de borboletas
precisam desse registro.
Chorando seus casamentos
vejo mulheres que conheci na infância
como crianças felizes.
A vida é assim, Senhor?
Desabam mesmo
pele do rosto e sonhos?
Não é o que anuncio
- já vejo o fim destas linhas,
isto é um poema – tem ritmo,
obedece à ordem mais alta
e parece me ignorar.
Me acontecem maus sonhos:
a casa só tem uma porta,
casa-prisão,
paredes altas, cómodos estreitos.
Chamo pelo homem, ele já se foi,
quem se volta é um negro,
indiferente.
A criança que se perdera,
ou deixei perder-se de mim,
é um menino-lobo,
eu a encontro grunhindo,
com um casal velho de negros.
Por que os negros de novo?
Por que este sonho?
Gasto minhas horas em pedir socorro,
esgotando-me, monja extramuros,
em produzir espaços de silêncio
para encontrar Tua voz.
É medo meu apregoado amor,
uma fita gravada, meu contentamento.
O primeiro santo do Brasil
invocou para um pobre:
“Post-partum, Virgo Inviolata parmansisti.
Dei Genitrix, intercede pro nobis”.
Ó Virgem,
volte à minha alma a alegria,
também eu
estendo a mão a esta esmola.

(de Oráculos de Maio, 1999)

7.12.08

ANTÓNIO ALÇADA BAPTISTA

(…)
Naquilo que me toca, confesso que não me dá muito jeito sentir-me mortal. É verdade que as pessoas lá vão morrendo – quer se ajeitem quer não – e admito que a preocupação da morte criasse inquietações colectivas que, colectivamente, se procurassem resolver. Eu, que tenho pelo «comunitário» algum respeito, mantenho o «colectivo» à distância porque não tenho para ele nem paciência intelectual nem paciência tout court. Mais: acho que a passagem subtil e sinuosa que a «intelligentzia» do nosso tempo foi fazendo do comunitário para o colectivo constituiu uma das maiores fraudes intelectuais e éticas de que a minha geração foi vítima. Também posso acrescentar que se isso fosse uma forma de snobismo ela não me repugnaria – assumo o meu snobismo em áreas igualmente delicadas – mas não é: trata-se duma certa preocupação de não ser cúmplice naquela burla e de – à minha pequena medida – não querer que os meus netos me acusem de ter sido também o fautor dum processo mental e social que lhes entregou uma vida inteiramente degradada e lhes retirou a palavra felicidade de qualquer projecto individual ou social. Porque foi isso que fizeram os que, colectivamente, quiseram salvar o mundo.
É neste contexto – e no próprio interesse do mundo – que não estou interessado em salvá-lo, mas numa coisa bem mais simples: tenho uma vida que tem ficado aquém das possibilidades que me proporciona a minha imaginação, tenho uma morte à vista e vivo rodeado de seres humanos que não quero enganar, sobretudo enganando-me a mim próprio.
É este problema prático e rigorosamente pessoal que, no meu caso, me leva a bater, discretamente, à porta do misterioso.
(…)

(excerto de Peregrinação Interior ou Quadros da vida quotidiana numa sociedade em vias de desenvolvimento / VOL. II O anjo da Esperança ou Reflexões sobre algumas evidências do mundo e alguns esconderijos da alma, edições Uranus, 1982)

4.12.08

[outros melros LV]

A. M. PIRES CABRAL

MELRO EM GAIOLA


I

Contrariamente aos outros pássaros,
o melro não canta: ri-se. O melro
é uma gargalhada semovente
voando entre as moitas,
deixando
farrapos de riso a esvoaçar nos ramos.

II

Pois bem. Alguém que odeia o riso
encerrou o melro na gaiola.
Alguém a quem o riso à solta
fazia espécie
quis ter aquele riso encarcerado,
à mão de semear.

Alguém capturou o melro e o meteu,
embrulhado no negrume da plumagem,
na gaiola, e pôs a gaiola na varanda.
Por maior escárnio, já se vê.

III

Nos primeiros tempos o melro não cantou
- quero dizer, o melro não se riu.
Quem quer perde o sentido de humor
cerrado numa gaiola.

Mas com o tempo, o silêncio foi-lhe pesando
à medida que ímpetos de riso borbulhavam
com crescente intensidade junto ao bico.

Até que o riso explodiu,
saltou fora como a rolha da garrafa
de champanhe, e eis a gaiola cheia
de canto – perdão, de riso.

IV

Nisto, os melros são como as outras aves,
soltam a voz para dizer: este lugar é meu,
quem quiser disputar-mo tem que se haver comigo.
Dizem-no geralmente a propósito de lugares amplos,
onde caibam voos inteiros e que valha
a pena defender de intrometidos.

Mas o melro na gaiola aprende depressa
a proporcionar o voo e a voz ao espaço que tem.
O impulso é maior do que o espaço disponível.
E canta – isto é, ri-se – como se fosse dono
duma fatia de mundo razoável.

Para o melro,
a gaiola é mesmo assim um espaço
que vale bem a pena defender
a gargalhadas.

V

Lição a reter: as expectativas
são um lugar
só aparentemente degradável.
Podem sempre encolher, mas nunca morrem.

VI

E todavia,
as risadas do melro na gaiola
fazem-se rasgões por dentro
como se em vez de riso fossem pranto.

Porque eu sou como ele:
alguém me reduziu o tamanho do quintal
até o quintal ficar isto que se vê
- e eu a defendê-lo a golpes de riso.

Como o melro, tal e qual.

(in Telhado de Vidro N.º 11 - Novembro 2008)

2.12.08

MARIA ÂNGELA ALVIM

ESPERA

Espera. Palavra espera
não escrita, não contada
às coisas abstraídas
da tortura de entender,
e espera sendo, contudo,
espalhada, diluída
como é a primavera
na superfície de tudo.
Espera não sei de quê,
- já que não tem artifício
não pode ser traduzida, -
espera não sei de onde vem
ou se vai a alguma parte.
(Se a folha tenra é memória,
guardando a chuva caída,
de um gosto talvez das raízes,
sabe se é fim ou retorno?)
Espera não sei de onde vem,
mas nessa espera floresço,
sou planta e não me disperso
somando à só substância
um tempo de justo acréscimo
que é de essência e epiderme.

- E, presa desta forma libertária
esqueço o que fui em vida
de tantas mortes sofrida...

(de Superfície / toda poesia, Assírio & Alvim, 2002 – documenta poetica)

1.12.08

ALEJANDRA PIZARNIK

ANÉIS DE CINZA


A Cristina Campo

São as minhas vozes cantando
para que não cantem eles,
os amordaçados tristemente na aurora
os vestidos de pássaro desolado na chuva.

Há, na espera,
um rumor de lilás rompendo-se.
E há, quando vem o dia,
uma partição do sol em pequenos sóis negros.
E quando é de noite, sempre
uma tribo de palavras mutiladas
procura asilo na minha garganta
para que não cantem eles,
os funestos, os donos do silêncio

(de Antologia Poética, tradução de Alberto Augusto Miranda, O Correio dos Navios, 2002 – original de Los Trabajos y las Noches, 1965)

Efemérides deste ano II

Fez, no dia 25 de Setembro, 36 anos que morreu Alejandra Pizarnik, aos 36 anos.

29.11.08

WILLIAM SAROYAN

(…) O mundo está cheio de pessoas que sabem histórias que darão filmes formidáveis, histórias que nunca foram escritas. O que parece é que os indivíduos que fazem os filmes nunca dão de cara com esta gente, ou, se dão, não estão para lhe dar ouvidos, por isso, é que a maioria dos filmes é uma autêntica porcaria, mesmo que tenham por estrelas Clark Gable, John Barrymore, Norma Shearer, ou outras do género. Os indivíduos que fazem filmes não se preocupam em fazê-los bons.
Só no bar do Izzy surgem, todas as noites, oitenta e sete argumentos para filmes magníficos. Todavia, jamais qualquer deles foi aproveitado para o cinema.
(…)

(excerto de O Génio, in O Índio do Packard: antologia, selecção e tradução de Alexandre Pinheiro Torres, Guimarães editores, 1961)

Efemérides deste ano I

Descobri há pouco tempo um livrinho com alguns contos de um Autor de quem nunca tinha ouvido falar: William Saroyan.
Após pesquisa, fiquei a saber que passaram este ano 100 anos sobre o seu nascimento.
Vale a pena ficar a conhecer.

27.11.08

[outros melros LIV]

RUI CAEIRO

ROLAS, MELROS


Descem do céu, de parte nenhuma, para debicarem
ora um ora outro, os restos de comida
no prato do gato

(de O Carnaval dos Animais, livraria Letra Livre, 2008 – honrosa oferta do Changuito, aquando da minha primeira visita à Poesia Incompleta)
RUI CAEIRO

Na minha terra travei conhecimento com as palavras. Primeiro, aquelas que os meus pais me ensinavam. Depois as outras, que estavam em volta. Depois as que eu trazia da rua, sempre mais apetecíveis e que brilhavam como uma moeda nova. Destas últimas, as mais interessantes eram sem dúvida as que tinham o cunho de proibidas.
A meu ver, todas elas, sem excepção, tinham direito à vida. Todas, mesmo as proibidas – principalmente as proibidas.
Todas eram, por igual, fruto da situação que as vira nascer. Todas eram imprescindíveis.

****

Na minha terra tomei gosto pelas palavras. As que ouvia, as que lia, as que dizia, as que não podia dizer. Tenho que reconhecer que algumas davam mesmo um prazer muito especial. Como um rebuçado que lentamente se dilui na boca, em contacto com a língua.

(de Pranto por Vila Viçosa, edição do Autor, 2007 – adquirido na livraria Poesia Incompleta, o local mais indicado para encontrar obras deste Autor)
Como não podia deixar de ser, lá fui à Poesia Incompleta, a nova livraria do Changuito.
"Livros novos e esgotados, portugueses e estrangeiros, edições deluxe ou mais baratinhas" e muita, muita diversidade. Além disso, um belo sofá onde nos podemos sentar e conversar com o proprietário.
Trouxe dois Caeiros e dois Gatos e o número zero da revista Índice.

Enfim, já vi que vai haver paragem obrigatória, de tempos a tempos, no n.º 11 da Rua Cecílio de Sousa.

Dos muitos que já se pronunciaram, destaco o Zé Mário Silva, que também incluiu umas fotos no seu post.

26.11.08

Entretanto...

A Rita, que aposto que atravessa sempre nas passadeiras mais por razões estéticas do que de segurança, criou a Rua da Abadia.
Muito interessante e muito bem escrito.

Entretanto...

O André Simões, mostra-nos as suas traduções de poetas árabes contemporâneos, no Pausa sobre as ruínas - الوقوف على الأطل


24.11.08

ITALO CALVINO

(excerto de) O Rei à escuta

(…) Somos reis, tudo o que desejamos é já nosso. Basta levantar um dedo e trazem-nos de comer, de beber, pastilhas elásticas, palitos, cigarros de todas as marcas, tudo numa bandeja de prata; quando nos dá o sono, o trono é cómodo, bem forrado, basta-nos semicerrar os olhos e abandonar-nos contra o espaldar mantendo na aparência a posição de sempre: o facto de estarmos acordados ou a dormir não altera nada, ninguém dá por isso. Quanto às necessidades corporais não é segredo para ninguém que o trono tem um buraco no assento, como todos os tronos decentes; duas vezes por dia vêm mudar o bacio; e até com maior frequência se cheirar mal.
Em resumo, tudo foi predisposto para evitarmos a menor deslocação. Não teríamos nada a ganhar movendo-nos, e tudo a perder. Se nos levantarmos, se nos afastarmos nem que seja um passo, se perdermos de vista o trono nem que seja por um instante, quem nos garante que ao voltarmos não encontramos outro qualquer sentado nele? Se calhar alguém parecido connosco, igualzinho. Vamos lá depois demonstrar que o rei somos nós e não ele! Um rei distingue-se pelo facto de se sentar no trono, usar a coroa e o ceptro. Ora quando estes atributos são nossos, o melhor é não nos separarmos deles nem por um instante.
(…)

(in Sob o Sol Jaguar, Tradução de José Colaço Barreiros, editorial Teorema, 1992)

21.11.08

LÍDIA JORGE

(...) E o cantoneiro disse. Às vezes costumo dizer. Amo as palavras bonitas, mas quando ouço certas coisas, ah punhão, apetece-me ir buscá-las ao fundo das tripas e do buraco que se chama recto. Ninguém. Ninguém se liberta de nada se não quiser libertar-se. E ainda disse. Mas aqui. Aqui ficam todos pelo desejo das coisas. Ah traição. (...)

(excerto de O Dia dos Prodígios, 1980)

16.11.08

[para lá de todas as razões. para cá de toda a Amizade]

ANA SALOMÉ

Ode da rapariga no quarto


aqueles corações honestos corta-se pelo frio
não têm o beneplácito do sol nem a solução
da ferocidade da lua e moram em corpos tristíssimos
peões incapazes de saltarem para o cavalo
que os levasse à torre. moram em mentes
de artistas da rua da amargura
em filhos únicos que morrerão sem descendência
em poetas que não têm Shelley como advogado
e que a idade começa a pesar no de outrora ouro esbanjado.

a honestidade da impenetrável neve
a descer num balão de ar frio sobre o quatro de rapariga
com a decoração da adolescência
o urso em cima do guarda-roupa
a secretária com os dicionários
aquele lugar que a torna inabitante
incapaz de adequar um corpo que cresceu com formas
e sem forma de ser de novo expelido.
a beleza do cheiro que há nas flores
que há no recôndito calor do corpo às sombras consigo
a acumular o pó que seria só dos móveis
aquele corpo deitado como se pousasse para Matisse
num fim de tarde e meticulosamente
retirasse o coração e o pusesse na cabeceira
alegando o descanso cinco minutos só
que a acordasse no fim do quadro
ou no fim da vida cinco minutos só
de absoluta nudez.

(de odes, editora Canto Escuro, 2008)

Entretanto...

Entretanto...

12.11.08

MANUEL ALEGRE

Eu fui, há já muito tempo, o que actualmente se chama “um atleta de alta competição”.
Cheguei a internacional, fui campeão nacional de natação, conheci, em todo o esplendor e intensidade da juventude, a glória efémera de subir ao pódio.
Talvez por isso eu nunca tenha confundido literatura com qualquer espécie de campeonato. Não é uma corrida de velocidade nem de fundo. Ninguém sabe em que lugar chega ou em que lugar fica. Só o tempo o dirá. E isso não é sequer o mais importante. O que conta é aquilo a que eu chamaria estado de escrita. E que é uma espécie de estado de graça, tão intenso e efémero como o de subir ao pódio. O que conta realmente, é esse estado de vivencia mágica, de mediação ou vidência, como queria Rimbaud. Essa revelação do mundo através da palavra poética. Eu acredito que cada palavra contém o universo. E que um verso errado pode eventualmente alterar o equilíbrio cósmico. Acredito na poesia, que está antes e depois da literatura. E que é sobretudo a busca incessante dos ritmos primordiais. Ou como diz Octavio Paz: “litania, oração, exorcismo, liturgia, celebração”.

(inicio do discurso de aceitação do Grande Premio de Poesia da Associação Portuguesa de Escritores, 1998 – in O Escritor – revista da Associação Portuguesa de Escritores Nº 13/14, Dezembro de 1999)

11.11.08

[estou onde está o homem - a propósito deste post do Miguel]


LÊDO IVO

A CORUJA


Minha noite é o dia
que enxota os sóis intrusos.
Qualquer vento enferruja
os portões e os navios
e muda em garatuja
as inscrições latinas
acima das cornijas.
Minha noite é a luz
sem subterfúgios
que atravessa o fundo
das agulhas mais finas
ou a fagulha dormida
em seu leito de hulha.
Só junto aos semáforos
desta capitania
sou a sentinela
das coisas encobertas
velhas botijas de ouro
gárgulas de cimalha
tocaia ou valhacouto.
E na alvura da noite
branca de mandioca
e esplêndida de coitos
estou onde está o homem:
na malha que o cinge
no abraço que o enlaça
na traça que o rói
no passo do sonâmbulo
na prega da mortalha.

(de Calabar, editora Record, 1985)

29.10.08

MÁRIO DIONÍSIO

(excerto de) Antiprefácio

[...] Porque poesia é vida – como diz o lugar-comum, e por alguma razão se trata dum lugar-comum –, mas vida na sua mais recôndita e autêntica, mais renitente realidade, no momento luminoso em que se dá conta de que está a sê-lo, a tornar-se possível, a tomar, por vias imprevisíveis, consciência do seu estado permanente de mudança. Um momento de prodigiosa paragem no seio da mudança constante com que a própria vida se confunde, palavra reveladora, salvadora, destruidora, busca que nunca encontra tudo e nunca desiste de buscar, vitória sobre toda a renúncia, mesmo quando fala de renúncia, grande janela escancarada ou estreita fresta que apenas se entreabre ou promete entreabrir-se no que teimosamente tenta fechar-se, acabar, desumanizar-se e, por ela, mais e mais se humaniza, permanece, mas transformando-se e, transformado, transformando. Ou não será isso que, para lá de todas as outras distinções, distingue estes objectos novos, feitos de palavras e espaços, dos outros objectos todos, uma mesa, um copo, uma cadeira, a máquina mais complexa que possa imaginar-se, por vezes tão belos, sim, mas só quando (só porque) a poesia os liberta da sua perfeição definitiva, acabada, esgotada, e criadoramente os toca de incompleto?
[...]

(de Poesia incompleta – 1936-1965, publicações Europa-América, 1966)
MÁRIO DIONÍSIO

4


Pintura fácil poesia fácil
que bom sentir
tua frescura natural

Que bom dizer que sim a toda a gente

Azul o céu
as casas brancas
sol amarelo

O vermelho na telha
o verde na garrafa e na caruma
como olhos e abrolhos
paixão e coração

Que bom dizer que sim que sim que sim
poder sentir esta harmonia universal
tão salutar tão natural

(que não existe em parte alguma)


15

Tudo começa num ramo
de oliveira
aberto em braços de que saem braços
luxuriosos caprichosos
vagarosos de abraços deslaçados
nos espaços

Prende-se nele a brisa em mil requebros lassos
complacente

Um bago branco Um bago azul
mil bafos de euforia

Na serena folhagem transparente
Solta-se quente aberta em leque
Uma quase alegria
Comprometida e inocente


25

Altos cachões de espuma
com instantes de prata
Um corpo aqui se afunda
em seu tumulo de água

De extremo a extremo um pano azul puído e sujo
batido pelo vento em si mesmo desata um arvoredo
de mágoa

Rola no horizonte o peso
redondo e cavo dum balão de medo

Ao longe um eco verde
de lata


46

Neste café quase deserto
não espero hoje ninguém
senão a cor difuso duma ausência
que não magoa e sabe bem

Uma palavra ou outra incompleta se recorta
na memória um minuto preguiçosa
só mal desperta quando a porta
se abre e fecha e entra alguém
que vai sentar-se longe ou aqui perto

O sol de inverno sinto-o nos dedos
como discreta ajuda carinhosa
a esta construída sonolência
tão espontânea sei lá em tanta gente

Que longe tudo o que procuro!

Ser como os outros todos um instante que seja e tão tranquilo e diferente!
sem planos sem segredos
sem história sem passado sem futuro


63

Só tintas claras Delicadas
gradações de riso aberto e de frescura
clareza de mim mesmo agora mesmo vista
noutros olhos suspensa e repetida
nos olhos todos que a desejam sem procura
como se um bem o maior bem pudesse haver na vida
sem conquista

Tintas claras que sonho se me furtam sem remédio
Outra vez roxo e negro as vão cobrindo
e com elas quem amo e todo o resto

Ao branco se mistura um sujo breu que não é tédio
ou indiferença mas tristeza dum tempo em que se morre
em caves de tortura e esquecimento
as palavras de fogo só as ouve o vento
e os amantes se perdem no caminho
contra fantasmas que eles mesmos vão urdindo

Pintura escura negra pegajosa faço e a detesto
em raiva cega transformando o meu carinho
e de raiva criando um vão tormento
que tudo diz e diz tão pouco ou pouco mais que nada

Pintura negra e feia suja cujo visco de mim mesmo escorre
ao arrepio de cada pincelada
que minha mão por mão desconhecida vai pousando
e não posso apagar nem evitar nem acusar desventuradamente
ou iludir sequer com desespero amando e rebuscando e só traindo
a claridade impenitente
que em mim também já mal distingo e bem distingo estrebuchando
lá mais fundo até ao fundo ferida
e amordaçada


81

Claridade violeta violenta
na face torturada

Indignação raivosa
e afogada
em amarelo fulvo e fosco
de surpresa e de roxo desencanto

Vem-lhe da grade um fio
vermelho vivo
que sinuoso corre pelo rosto

e ao canto da boca morta
um grosso empasto de branco
sujo de moscas e de pranto

(de Memória dum Pintor Desconhecido, 1965 – incluído em Poesia Incompleta, publicações Europa-América, 1966)

[Este livro foi considerado por Nuno Júdice como o melhor de poesia do século XX, no inquérito que está a ser feito pelo blogue Os Livros Ardem Mal. Fico contente por pertencer à meia dúzia de pessoas que sabiam que o livro existe.]
CARL SANDBURG

Quem conhece o povo, os seareiros emigrantes e os apanhadores de fruta, as vítimas de empréstimos fraudulentos, os especuladores das casas a prestações,
Os malabaristas da areia e da madeira que amaciam as mãos passando-as pelo molde onde vai ser fundida a estrutura do motor do nosso carro,
Os pulidores de metais, os soldadores, e os pintores que aplicam os acabamentos ao automóvel,
Os rebitadores e os roscadores de parafusos, os cavaleiros de vigário na grande cidade, os vaqueiros das Grandes Planícies, os ex-condenados, os porteiros de hotel, os carregadores dos caminhos-de-ferro, os guardas das retretes –
O recrutador do sindicato com a lista daqueles que estão prontos a aderir e a dos hesitantes, os informadores pagos secretamente que denunciam qualquer movimento organizativo,
Os que andam de casa em casa procurando adesões, os que tocam às portas, os que dizem bom-dia-já-ouviu-dizer-que, os dos piquetes de greve, os fura-greves, os que são pagos para causar distúrbios, o pessoal da ambulância, os que vão atrás da ambulância, os que querem tirar fotografias, os que lêem os contadores, o pessoal dos barcos de pesca à ostra, os faroleiros –
quem conhece o povo?
Quem conhece tudo isto desde o fosso aos pináculos? É o povo, sim.

(tradução de Hélio Osvaldo Alves, in O escritor – Revista da Associação Portuguesa de Escritores, Nº 13/14 – Dezembro de 1999)

28.10.08

R. LINO

6.


Alguns saem para os exílios, mandam outros
que se lancem noutras águas os detritos...
O planeta sobrepõe-se ao planeta:
alguém se esqueceu de apascentar os países
dentro da pertença da terra e os seus nomes
não merecem os sacrifícios dos que mandados
por força sua obedeceram. Acreditamos
nas oferendas do espaço
como se o tempo explodisse sem as tomar
e a própria terra nos herdasse
com os sonhos sem os males.
Nunca poderei esquecer
como desliza a os lados
o chão daquela varanda
aberta ao calor do campo
na hora em que as ovelhas descansavam...

(de Paisagens de Além Tejo, edições Rolim, 1986)

27.10.08

JORGE ROQUE

Lado de fora

Vida ou lâmina este vinco por onde dobro dias agudos, rumino a frase, enquanto percorro com a língua a linha da cola e alongo entre os dedos a mortalha enrolada, e fumo, fumo, o mesmo já sempre fumado, cansado, repetido (lembro-me de ouvir dizer que os drogados se pareciam todos uns com os outros, fico a pensar nisso). Pela janela o mesmo olhar de nunca ter visto, a mesma procura de nunca o ter sido, a mesma esperança de nada esperar (aquela cor desbotada de criança cansada que já nas fotografias da infância reconhece). Entre olhar e olhar, os dias que morrem , a vida que passa, lado a lado com o charro que arde e o sorriso que fazes para não te verem. Mas talvez te vejam do lado de fora em que não tês vês. E talvez sejas igual aos que de fora viste, como tu julgando-se escondidos.

(de Broto Sofro, Averno, 2008)

26.10.08

PAUL GAUGUIN

(excerto de) NOA NOA

[...]
Nessa noite fumei um cigarro na areia, à beira-mar. O sol chegava rapidamente ao horizonte e começava a esconder-se atrás da ilha de Moorea, à minha direita. Opostas à luz, as montanhas desenhavam-se negras e poderosas no céu incendiado. Como velhos castelos de ameias. Enquanto todas estas terras sucumbem no dilúvio, de tanta feudalidade desaparecida para sempre e respeitada pelas ondas (murmúrio de uma multidão imensa) resta a cimeira protectora mais próxima dos céus, que olha majestosamente para as águas fundas, a ironia ou a altivez condoída. Esta multidão talvez submersa por ter tocado na árvore da ciência, opondo-se à cabeça. – Esfinge.
A noite chegou depressa. Desta vez ainda Moorea dormia. Mais tarde adormeci na minha cama. Silêncio de uma noite tahitiana. Só se ouviam as batidas do meu coração. Da cama viam-se os caniços alinhados e espaçados da cabana, com filtragens de lua, como um instrumento de música. Entre os nossos antepassados, chama-se pipo*, entre eles vivo – mas silencioso – (de noite fala a recordar). Adormeci com esta música. Por cima de mim, o grande telhado alto de folhas de pandanus com os lagartos que nele moram. No sono eu podia imaginar o espaço acima da minha cabeça, a abobada celeste, nenhuma prisão que nos fizesse sufocar. A minha cabana era o espaço, a liberdade.
Eu estava completamente só e olhávamos um para o outro.
Dois dias depois, esgotei as minhas provisões. Com dinheiro, eu tinha imaginado que encontrava o necessário para me alimentar. Ora a comida existe é nas árvores, na montanha, no mar, mas tem de saber-se trepar a uma árvore alta, ir à montanha e voltar carregado, apanhar peixe, mergulhar e no fundo das águas arrancar conchas solidamente coladas à rocha. Eu, homem civilizado, por ali andava e naquele instante muito abaixo do selvagem; e como o estômago vazio me obrigava a pensar tristemente na situação, um indígena fez-me sinais e gritou na sua língua: «Vem comer». Compreendi mas senti vergonha. Abanando a cabeça, recusei. Minutos depois uma criança veio em silêncio abandonar-me à porta alguns alimentos embrulhados muito asseadamente em folhas verdes recém-colhidas, e retirou-se. Como eu sentia fome foi em silêncio, também, que aceitei. Um pouco mais tarde o homem passou. Sem parar, só disse com ar amável uma palavra: «Paiá»? Estás satisfeito, percebi vagamente.
No chão, debaixo de tufos de largas folhas de abóbora, descobri uma cabeça pequena e escura, de olhar tranquilo. Estava a ser examinado por uma criança que fugiu amedrontada, quando os meus olhos encontraram os seus. Estas criaturas, estes dentes de canibal faziam subir-me à boca a palavra «selvagens». Para eles eu também era «o selvagem». E talvez com razão.
[...]
*Nota do Tradutor: Escrevendo «pipo», Gauguin deve talvez querer referir-se a pipeau, ou seja, uma gaita pastoril que pode realmente sugerir os caniços paralelos da sua cabana.
(in Noa Noa, precedido de Homenagem a Gauguin, de Victor Segalen, tradução de Aníbal Fernandes, Assírio & Alvim, 1985 - Arte e produção)
VICTOR SEGALEN

(excerto de) HOMENAGEM A GAUGUIN

[...]
Outra desgraça nos reserva a intimidade do Sr. Gauguin, empregado bancário – e desgraça ainda mais estéril. Porque se Huysmans andava a procurar-se com volúpia desde novo e através do lodaçal da sua própria alma, se Rimbaud escrevia à profeta antes de atingir a verdadeira mocidade – Paul Gauguin, que a vida empurrava, não queria saber de pinturas. Consinta o leitor em espantar-se: nesta crónica de um grande pintor que logo ao princípio tem mais de vinte e oito anos, não estava em causa a pintura.
E com um paradoxo duplo, oposto aos exemplos anteriores, pode mesmo acreditar-se que as funções do dia-a-dia é que levaram Gauguin a contactar com as tintas. Huysmans explica isto chamando-lhe manifestação do Maligno que costuma meter-se na alma por todos os transpirantes poros da nossa pele... Pode supor-se que o demónio das Visões penetrou na presa ao Domingo, esse vazio que uma semana em cheio provoca no bom empregado. Um belo domingo, para matar o tempo, Gauguin pôs-se a pintar. Vai objectar-se que uma fatalidade idêntica poderia tê-lo feito pescar à linha; ou ainda que o gosto de pintar fica a dever-se como em Taine, esse bom examinador, a uma influência do meio (mas o próprio Gauguin regista que Taine falou de tudo, excepto de pintura) e pode dizer-se, com Jean de Rotonchamp [Um dos primeiros, se não o primeiro, biógrafo de Gauguin. (N. do T.)], que «em casa de Gustave Arosa, seu tutor, o futuro artista do Cristo amarelo talvez tenha adquirido um amor latente e não pressentido pela obra pintada, pois esse Gustave Arosa... dotado de fino gosto, reunira em sua casa um certo número de telas da escola moderna...». Mais valerá reconhecermos a geradora virtude do Domingo num bom empregado, e a sua maleficiosa virtude, pois nesse mesmo dia, descanso do Criador, é que o Maligno actua e dá febre aos amaldiçoados entre os homens, seus filhos de orgulho e revolta: os artistas, os Foras-da-lei. Em tudo isto quero ver uma predestinação autêntica!
[...]

(in Noa Noa, de Paul Gauguin, precedido de Homenagem a Gauguin, tradução de Aníbal Fernandes, Assírio & Alvim, 1985 - Arte e produção)

25.10.08

PAUL GAUGUIN


Autoportait au Christ jaune, 1889-1890
óleo sobre tela
Paris, Musée d'Orsay

24.10.08

PAUL GAUGUIN


Le Christ jaune, 1889
óleo sobre tela
92x73cm
Buffalo, Albright-Knox Museum



AMADEU BAPTISTA

PAUL GAUGUIN: O CRISTO AMARELO (1889)


E sabíamos todos que a hora
era chegada e tudo em volta
escurecia,

e que, em Pont-Aven,
era chegado o tempo da colheita
e os campos estavam todos amarelos.

E aconteceu que as mulheres da Bretanha
ajoelharam,
e vinha eu no caminho
e vi a luz,

e os meus olhos cegaram para que visse
a roda do martírio
e o escárnio.

E aconteceu que as cores se saturaram,
e a paleta recebeu,
vindas do céu,
as cores

– e eu enchi a tela de perguntas,
e, pelo esplendor,
atirei-me ao chão
e em mim senti um som sombrio.

E vi, então, que as mulheres
choravam
e que os homens
não se compadeciam
de quem sofria,

e tudo tinha um brilho
esplêndido,
um brilho sobrenatural,
à minha volta.

E aconteceu que se ouviu cantar
o galo,
e que toda a terra se abriu para aquele brilho,

e os camponeses vieram,
e choraram.

E vi que preparavam varas novas,
e que as varas eram só espinhos,
e que o homem caía,

caía mesmo em frente aos nossos olhos,
que nada mais fazíamos do que o ver caído.

E eu tomei a tela e preparei-a,

e sangrava o homem
abundantemente,
e eu perguntei ‘quem somos?’
e nada se ouviu.

E chegou o crepúsculo
e, em volta, era só amarelo o que se via,

e o rosto do homem inundava-se de lágrimas e de sangue,
e arquejava-Lhe o dorso,
e puseram-Lhe aos ombros o madeiro.

E as mulheres da Bretanha
irromperam em choro,
e a multidão
adensou-se no lugar,
e suplicou o pão,
e os peixes,

e seguiram-No.

E vi as minhas cores queimadas pelo fogo,

e que os meus pincéis vibravam,
e misturei ao óleo terebentina,
enquanto o homem subia pelo monte
onde reinava o silêncio
e a abominação.

E perguntei:
‘quem somos, de onde vimos?’,

e em volta levantou-se um grande incêndio,
e as labaredas tomaram o lugar,

e era tudo amarelo nesse sítio.

E houve uma mulher que trouxe
água,
e com a água trouxe um pano branco,
e limpou-Lhe o rosto,
e o Seu rosto estava iluminado.

E eram amarelos os Seus cabelos,
e amarela era a Sua barba,
e a cruz, nos ombros,
era amarela,
como um topázio.

E, então, caiu o homem
pela segunda vez,
e as mulheres da Bretanha
arrancaram os cabelos,

e olharam em redor
para que chegasse algum socorro,
de onde quer que fosse.

E os campos em volta permaneciam amarelos,
e eu prendi aos dedos o pincel
porque toda a terra tremia

e o coração
saltava-me do peito,
e a cabeça doía-me
e pesava-me.

E o homem seguiu, arrebatado
pela dor,
e um outro homem veio em Seu auxílio,
e eram grandes as feridas,
e deitavam muito sangue.

E as mulheres da Bretanha
seguiram com Ele,
e vacilavam-Lhe os passos,
e o Seu corpo
era todo amarelo,

a boca,
as mãos,
os pés.

E assim se acercou do cume da montanha,
com as mulheres da Bretanha sempre atrás,

e havia soldados
e outros condenados,
que o viram cair pela terceira vez.

E Ele levantou-se,
e a multidão exultou nesse momento,
e eu, com o pincel, fiz o esboço
daquele quadro de grande sofrimento.

E uma das mulheres chamou-Lhe ‘filho’,
e outra ‘amado’,

e a elas se juntou outra mulher
que Lhe chamou ‘irmão’,

e, nos seus vestidos,
caíram lágrimas de sangue e de estupor.

Do meu pincel só o amarelo
permitia
estender-se na tela,
e tudo era amarelo,

os campos em volta,
o rosto de quem estava,
e a cruz.

E cravaram-Lhe as mãos e os pés
àquela cruz,

e tudo em volta foi um só silêncio,
e parecia que a terra dimanava
um odor amarelo,
que só as mulheres da Bretanha compreendiam.

E um soldado
veio com a esponja
embebida em vinagre,
e prendeu-a a um ramo,
e deu-Lhe de beber, porque a sede
o martirizava.

E eu executava a minha obra,

e tudo era amarelo à minha volta,
as árvores,
as colinas,
as casas que se viam do ponto onde estava.

E o tempo passou,
e olhei o homem,

e olhar a Sua face pacificou-me,

porque o homem sorria
por ver a multidão
a partilhar o pão
e os peixes
que Ele lhes entregava.

E a terra tremeu,

e vi tudo amarelo à minha volta,
e as mulheres da Bretanha olhavam-No
a sorrir,
enquanto eu perguntava:
‘quem somos, de onde vimos, para onde vamos’?

E na linha do horizonte vi os anjos,

e as asas dos anjos
cintilavam,

e cintilava, também, esta pintura
onde, em silêncio, pus
as mulheres da Bretanha,

e o Cristo amarelo
com o meu rosto.

(de Doze Cantos do Mundo, inédito, vencedor do Prémio Literário Oliva Guerra 2008)

Outros inéditos deste livro em da poética e Estrada do Alicerce.

Ponto da situação IV

Acaba de ser anunciado que Amadeu Baptista, com o original Doze Cantos do Mundo, é o vencedor deste anodo Prémio Literário Oliva Guerra, promovido pela Câmara Municipal de Sintra. É o 14º prémio atribuído ao Autor e o 8º nos últimos dois anos.

O Amadeu está de parabéns, não tanto pelos prémios, que lhe vão permitindo viver, mas sobretudo pela ousadia que coloca nos seus poemas e pela força que sabe transmitir aos que o lêem. De parabéns está também o Júri, que soube reconhecer essa força, no meio do anonimato dos concorrentes, contribuindo para a divulgação de uma extensa obra já com 26 anos, que merece ser conhecida.

Por sinal, o Jornal de Letras que saiu anteontem traz uma página inteira com uma bela e interessante crónica de Fernando Guimarães, dedicada aos três mais recentes livros de Amadeu Baptista.

Ponto da situação III

Já está anunciado publicamente o novo livro da Ana Salomé, Odes. Pessoas bonitas fazem coisas bonitas.

A edição é do Canto Escuro do Vitor Vicente, que anuncia também Grafipoesis, de Rui Carlos Souto, autor já antes publicado sob esta chancela.

Ponto da situação II


Ontem, na Casa Fernando pessoa, foi apresentado o número 2 da revista Criatura.
Falaram Fernando Pinto do Amaral e Tiago de Oliveira Cavaco, cada um no seu registo próprio.
Gostei de os ouvir e gosto da revista.

Ponto da situação I

Recentemente fiquei a conhecer alguns bons blogues, que valem mesmo a pena serem vistos:
- A única real tradição viva;
- Café Central;
- Casa dos Poetas;
- Do trapézio sem rede;
- Hospedaria Camões;
- Last Breath;
- Memento;
- Poesia dos Dias Úteis (dedicado ao poeta Vasco Costa Marques).

(com particular referência ao André Simões e ao João Gaspar que tive o gosto de conhecer pessoalmente.)

22.10.08

FERNANDO CABRITA

FALEMOS


Falemos então de todas essas coisas a que nunca soubemos dar um nome.
Coisas como café e cerejas,
coisas como memórias do verão de ontem
e de tudo o que repousa já no ónix frio dos dias.
falemos não porque as vejamos,
porque as sentimos à vaga luz dos crepúsculos que morrem
e são para nós as florestas que passam velozes nos vidros do carro
e os silêncios dos faunos que atravessam os bosques e as ilusões
e as pequenas ondas que vêm desmaiar à praia
e as vozes antigas que ainda nos falam na alma coisas despercebidas
e as luas que havia no final do verão.
Falemos, para que de novo sejam
e de novo vivam.

Falemos, para que estejamos vivos.

(de Doze Poemas de Saudade, 4 Águas editora, 2008)

21.10.08


NICOLAU SAIÃO

HOMENAGEM A JACK, O ESTRIPADOR


O teu sorriso fugaz ocupa o espaço
na aresta furtiva, no lance bem ritmado
e liga infinitamente
alma e sombra de
criatura.

Um deus em que tudo
é distante. Vivemos, bem verdade é
sempre a despedir-nos: basta apenas
exagerar um bocadinho
- e aí está ela, a rica melancolia

Com fato de cheviote? Talvez. Onde se lê futuro
deve ler-se presente: vísceras, uma árvore, o olhar
triunfante do anjo. O nosso ser é para nós
um vivo que a nostalgia transformou
gravemente em seus braços
calmos e perturbados.

Há centenas de bolsos. E navalhinhas mil. Cruzando
o ar uma loira, uma ruiva, uma morena
confundem as linhas e os meredianos.
Serenos são os séculos, como insectos
no limiar da oculta porta: e por dentro
cabeças abanando e um que outro odor
de um doce ovário atónito.

O viandante traz dos tempos velhas coisas
até que o som de um violino faz estalar
anos e falangetas. Saibamos
deixar-nos descansar, que o Mundo
morre para ser objecto
ou silêncio.

Entre as crustas da carne subsistem
antebraços, continentes, colhões – os desígnios
que nem tu – surpresa! – descascar poderias
em qualquer viela esconsa

Pobre animal liberto
e indiferente

eternamente exposto a fulgores e ilusões.

(de Flauta de Pan, edições Colibri, 1998)

20.10.08

MARIA ALBERTA MENÉRES

Aqui posso medir tudo o que digo
pelo eco em montanhas indomáveis:
toco a crosta da terra e de repente
logo um som me anuncia em claridade.
Ouvir fica para lá de qualquer voz
junto à fonte mais triste onde se guarde
uma pequena lágrima que esqueça
o que de mim se lembra em tenra idade.

(de O Jogo dos Silêncios, Huguin editores, 1996

19.10.08

ANTÓNIO MEGA FERREIRA

(excerto de) O Maior Espectáculo do Mundo

(…)
A memória não é uma caixa de imagens, isso ao menos sabe Maria Ausenda. A memória, diz para si própria, é apenas uma moldura que delimita o espaço de um quadro, mas que lhe ignora o tempo, que mistura as cores e as formas numa espécie de cadinho adormecido sobre o aparador da infância. E depois, um dia, a necessidade ou a imaginação despertam-na, e ela transforma-se em fábrica de sonhos e de ilusões, um pouco mais de emoção aqui, um diálogo retocado acolá, bruscamente as imagens todas rodopiam sobre si próprias e, quando de novo se aquietam, quando se tornam suficientemente nítidas para poderem ser evocadas, quem pode dizer que foi esse o lugar que elas ocupavam quando tudo se passou, quem se atreve a garantir que tudo se passou assim mesmo, quem ousaria jurar que alguma coisa se passou?
(…)

(in As Caixas Chinesas, 1988)

18.10.08

RUY DUARTE DE CARVALHO

Monumental estrutura erguida do assento, a desdobrar-se em carne enquanto uma das mãos penetra o céu e a outra esmaga, com acostumados dedos, a folhagem madura de um ramo ao seu alcance, nervuras colossais do calcanhar ao dorso, a dar contorno às coxas, petrificadas massas de cimento armado, postas ali num gesto de euforia. Se o zoom é permitido avante então, acometemos estes hemisférios até não divisar senão a linha que divide as partes, descer por ela abaixo e penetrar no cheiro, afastar, com as mãos, os juncos e a chipipa, a custo caminhar no lodaçal do mangue e ouvir o borbulhar da vida ali contida. Oh corpo de cimento aparelhado em curvas, utilitária mama feita para aleitar, eis a distância, eis a distância que há para além dos livros, tu mama fina só relevo e cor, leve acidente em torso de rapaz, fêmea distante a olhar-me fria e grave, ciente do meu jogo e dos meus trunfos. O mão molhada, aqui, na minha frente, que vai ao peito para untá-lo negro, o brilho dos adornos prolongado ao ventre e o cuidado que há, eis um requinte extremo, no ajustar do pano às virilhas espessas enquanto o corpo recupera o assento e de novo se empenha a cativar o fogo.

(de Hábito da Terra, 1988 – in Lavra, Poesia reunida 1970-2000, edições Cotovia, 2005)

[Queijas, 18 de Outubro de 2008]

17.10.08

[Será que o poema poderá suster a sua verde adolescência?]


ANTÓNIO RAMOS ROSA

Os versos podem ser pedras brancas
ou cabeleiras
um líquido murmúrio vagamente solar
a cintilação de uns olhos na brisa ou na folhagem
as vibrantes antenas de um insecto
o perpassar de uma sombra sobre um rio
um ávido crescimento
um alvoroço intenso

Às vezes todas as imagens parecem aspirar
à pura tranquilidade de um deserto
ou de um reino azul desconhecido
Outras vezes são escuramente velozes
ou ofuscantes como relâmpagos num abismo
Quando sobem em espiral dentro de um corpo
tocam um céu de folhas e de um azul cristalino
Outros consagram o pão dos homens com a luz
ou oferecem o seu sangue nas suas pontes de sombra
Alguns são tão suaves como a brisa de um olhar
ou tão transparentes como um corpo de água
Outros abrem as portas às bocas sequiosas
e são o desejo de chegar às fontes vivas
com mãos de mercúrio e incandescentes cabelos
Mas todos têm a chama de um amor branco do espaço



Sabemos que não há resposta
e que a não resposta é um não há
Qual é o rumo então dos nossos passos?
Estamos talvez num círculo que é o círculo do tempo
Mas a nossa aspiração é encontrar o espaço
ou formar o espaço
em que a ausência e o desejo coincidam
numa palavra que seja
a palavra mais contigua ao silêncio
como um tapete antigo mas recente
com a frescura nova para habitar o dia



O que há de mais nu
é o fértil murmúrio do ócio e do olvido
Talvez não seja mais do que a vibração do nada
ou o frémito do silêncio como um pólen branco

Há uma equivalência entre a página e a espádua côncava
do dia Dir-se-ia que uma mulher lavou
um solo vermelho e que à fronte subiu
a frescura inicial dessa passagem de água
e que o silêncio novo lavou as veias

É então que reparamos numa plácida jarra
com duas flores brancas e sentimos o odor denso
de um nome impronunciado que inunda toda a casa
com vigor lento de uma larga pulsação
que tem a brancura espessa do pulmão de um deus



O que será o silêncio? Como pode o poema
partir do que ignoramos e a que damos um nome
sem saber a sua natureza e qual a sua plenitude?
Não será ele apenas um pressentimento um frémito
sem existência própria um irredutível quase
que nunca chegasse à revelação de um termo ou ao cimo de si mesmo?
Nós sentimo-lo como se a luz vagarosamente repousasse
numa onda de suavidade e o barco do efémero
revelasse a plenitude do eterno a essência viva
do nosso ser sob o voluptuoso véu de um sono imaculado
Sentimos a nudez da brancura e nela o princípio o centro e o alvo
do nosso desejo de coincidir com a indizível formosura
que numa onda silenciosa ascende e sem se revelar culmina
numa corola transparente ou num jardim de nuvens
de que só apercebemos o aroma branco e subtil
que não embriaga mas nos inebria como se vogássemos numa lua
que fosse unicamente aérea e de pura identidade
Será que o poema poderá suster a sua verde adolescência
e receber este sopro diáfano para que ele próprio seja um astro de silêncio?

(in Bumerangue N.º 1)