13.10.11

JOAN MIRÓ



Le soleil rouge ronge l'araignée, 1948
óleo sobre tela
Nahmad Collection, Suiça

RAUL DE CARVALHO


(Joan Miró, Le soleil rouge ronge l'araignée)


Foi Deus que me disse
que existe uma aranha
que existe o sol
que existe um pintor
e que Deus deu a alma a esse pintor
para que ele com estes quatro elementos
a aranha o sol e a vontade de Deus
pudesse fazer com uma teia de aranha
uma constelação
semear dentro dela
sementes de alegria
a alegria que está nascendo
no sol na aranha na alma nos olhos

Foi Deus que me disse
que a alegria tem olhos!

Constantemente me salvo!
Mas é sempre à minha custa

Fico sempre com um pouco
mais de sombra no olhar

Quando julgo que chegou
enfim a minha vez

Ouvir um coração a bater
é o bastante para

Saltar ao eixo apanhar amoras
acreditar que em minhas mãos
o suor é mais brilhante do que o sol

E dizer-te —
Amor o teu sorriso
neste momento é eterno!


(de Mesa da Solidão, 1955)


12.10.11

ANTÓNIO FRANCO ALEXANDRE


PRIMEIRAS MORADAS
3


rir não sossega, a terra
só pouco a pouco dura. não existe
coisa nenhuma que se não visite;
a pastilha do ar dá-nos o grito
certo no som, no gosto, no ruído;
já as coisas visíveis aborrecem.

inverno a mais ou menos vou viver
uma arte cheiínha de razões
numa casa de viscos permanentes. hoje
é manhã cedo no célebre paquete
desembrulhado a meio pelo cais
e doces serpentinas, apetece

mascarar-nos tamanho natural,
a pele contra a pele, que surpresa
sentir a fina, fria porcelana!
tão pouca graça achamos
nas palavras, a vazia
conversa dos postigos.


(de As Moradas, 1987)

11.10.11



JOÃO MIGUEL FERNANDES JORGE


TIMOR

Talvez não seja suficientemente bom poeta
para uns versos, sequer, sobre Timor.
Timor, lembro-me como todos os outros do Ruy
Cinatti e de um mapa antigo que fecha um
dos seus livros sobre botânica timorense. O mapa, a negro,
traz nomes escritos a vermelho e regista o
avanço dos portugueses pelo interior da ilha.
Mostra-nos pequenas e altas casas de estacaria
que eu próprio desenhei num mapa de Timor
quando na escola nos ensinaram as províncias do
ultramar mais distante.
Timor era uma ilha que colori a amarelo. Havia
um enclave — Ocussi
Ambeno tinha sobre mim a sedução
das coisas mais que longínquas, perdidas. Ocussi e
Ambeno que soube resistir aos holandeses
nomes que persistem com as ilhas de Ataúro e Jaco
de mistura o lagarto-voador Draco, Solor
sândalo e o pico mais elevado das montanhas do
Ramelau. Coisas assim tão altas e distantes,
assim perdidas.

Lembro-me hoje, ainda e cada vez mais de Timor
do Timor de Ruy Cinatti, do Timor do irmão do Manuel
Gusmão que lá morreu e tinha os olhos cor
das gencianas azuis. Escrevi
o nome das povoações com uma estreita caneta
de tinta da china. É correcto que escreva sempre
no passado, porque poucos timorenses irão
sobreviver e o Ruy Cinatti volta a cruzar os meus
olhos. Sustenta aquela dança de paz e guerra
que bailou na noite em que nos conhecemos. «O corpo é
sempre o corpo de Cristo. Uma pequena superfície que
recebe todas as feridas do mundo. Qual-
quer corpo não é mais do que
corpo de Cristo.» Lembro-me dele na cama do hospital: a
dor, a rede de soro e sangue. À sua volta, os amigos. E
de todos dizia serem «maiores poetas». Talvez
fossem, sejam, e isso que importância tem?
Por entre ciganos e nevoeiro e tendas de pano
velho como se estivessem cobertas de lepra, vejo-
-o no distante dia em que me visitou
pelos começos de oitenta. Fotografia
que sofreu o abandono no fundo de uma gaveta. Vejo-
-o com aquele sorriso de leve troça a que prendia
verdades de profeta e junto a si o meu pai,
talvez da sua idade, talvez um pouco mais velho.
(A minha mãe não quis a prisão dessa imagem. Pensou
que eu não gostava dele. Não percebeu
que se fiquei inquieto com a sua chegada
foi porque supondo-o santo, um santo é
naturalmente uma coisa incómoda.) E lá estão a
Ana, o Manuel Rosa, a Ilda e aqueles a quem chamava
«os meus anjos-da-guarda». Há ainda umas crianças
com espadas de plástico. Não sei como apareceram,
mas os santos trazem muitas vezes consigo putti. E
ele disse, quando o levei
pelos caminhos da aldeia que perdem sobre o mar
até à casa onde vivera o Ruy Belo; pelas ruas
sob o nevoeiro dessa manhã de agosto, por
entre vendedores de quinquilharia, camionetas e
tractores embrulhados em serapiheiras e cordas,
onde pernoitavam camponeses e gente vinda dos bairros
periféricos de Lisboa, ele disse
«é a idade média. Chega nestes dias do verão,
um tempo de necessidade em que tudo apodrece.»

Senhores da palavra Timor,
memória,
canção em teia-de-lavor.

Quando fiz a quarta classe
Timor era uma língua de terra
cuja largura só dava para uma estrada
limitada pela água do mar.
Timor. Não sei o que possa escrever. Um
só verso que valha Timor. Só me lembro do Pedro
Brazão à porta do pavilhão de queimados de Santa
Maria: «Aqui, a vida é uma luta perpétua,
pequenos avanços contra um enorme desastre».
«Malhas que
o Império tece» por entre dedos de anéis e que ofereceram
um punho cerrado. Por isso, hoje, os timorenses que restam
olham o lugar vazio do nada-
dor-salvador, Portugal, alguém que julga ter já
vivido o suficiente para merecer o privilégio de recordar
e deixa que Timor desapareça do ecrã,
como quem cancela a última série
sobre o Império, reconhecido olhar de
antiga posse e de história
um silêncio povoado de ruídos no outro extremo da vida.


(de O Barco Vazio, editorial Presença, 1994 - colecção forma)