11.10.11



JOÃO MIGUEL FERNANDES JORGE


TIMOR

Talvez não seja suficientemente bom poeta
para uns versos, sequer, sobre Timor.
Timor, lembro-me como todos os outros do Ruy
Cinatti e de um mapa antigo que fecha um
dos seus livros sobre botânica timorense. O mapa, a negro,
traz nomes escritos a vermelho e regista o
avanço dos portugueses pelo interior da ilha.
Mostra-nos pequenas e altas casas de estacaria
que eu próprio desenhei num mapa de Timor
quando na escola nos ensinaram as províncias do
ultramar mais distante.
Timor era uma ilha que colori a amarelo. Havia
um enclave — Ocussi
Ambeno tinha sobre mim a sedução
das coisas mais que longínquas, perdidas. Ocussi e
Ambeno que soube resistir aos holandeses
nomes que persistem com as ilhas de Ataúro e Jaco
de mistura o lagarto-voador Draco, Solor
sândalo e o pico mais elevado das montanhas do
Ramelau. Coisas assim tão altas e distantes,
assim perdidas.

Lembro-me hoje, ainda e cada vez mais de Timor
do Timor de Ruy Cinatti, do Timor do irmão do Manuel
Gusmão que lá morreu e tinha os olhos cor
das gencianas azuis. Escrevi
o nome das povoações com uma estreita caneta
de tinta da china. É correcto que escreva sempre
no passado, porque poucos timorenses irão
sobreviver e o Ruy Cinatti volta a cruzar os meus
olhos. Sustenta aquela dança de paz e guerra
que bailou na noite em que nos conhecemos. «O corpo é
sempre o corpo de Cristo. Uma pequena superfície que
recebe todas as feridas do mundo. Qual-
quer corpo não é mais do que
corpo de Cristo.» Lembro-me dele na cama do hospital: a
dor, a rede de soro e sangue. À sua volta, os amigos. E
de todos dizia serem «maiores poetas». Talvez
fossem, sejam, e isso que importância tem?
Por entre ciganos e nevoeiro e tendas de pano
velho como se estivessem cobertas de lepra, vejo-
-o no distante dia em que me visitou
pelos começos de oitenta. Fotografia
que sofreu o abandono no fundo de uma gaveta. Vejo-
-o com aquele sorriso de leve troça a que prendia
verdades de profeta e junto a si o meu pai,
talvez da sua idade, talvez um pouco mais velho.
(A minha mãe não quis a prisão dessa imagem. Pensou
que eu não gostava dele. Não percebeu
que se fiquei inquieto com a sua chegada
foi porque supondo-o santo, um santo é
naturalmente uma coisa incómoda.) E lá estão a
Ana, o Manuel Rosa, a Ilda e aqueles a quem chamava
«os meus anjos-da-guarda». Há ainda umas crianças
com espadas de plástico. Não sei como apareceram,
mas os santos trazem muitas vezes consigo putti. E
ele disse, quando o levei
pelos caminhos da aldeia que perdem sobre o mar
até à casa onde vivera o Ruy Belo; pelas ruas
sob o nevoeiro dessa manhã de agosto, por
entre vendedores de quinquilharia, camionetas e
tractores embrulhados em serapiheiras e cordas,
onde pernoitavam camponeses e gente vinda dos bairros
periféricos de Lisboa, ele disse
«é a idade média. Chega nestes dias do verão,
um tempo de necessidade em que tudo apodrece.»

Senhores da palavra Timor,
memória,
canção em teia-de-lavor.

Quando fiz a quarta classe
Timor era uma língua de terra
cuja largura só dava para uma estrada
limitada pela água do mar.
Timor. Não sei o que possa escrever. Um
só verso que valha Timor. Só me lembro do Pedro
Brazão à porta do pavilhão de queimados de Santa
Maria: «Aqui, a vida é uma luta perpétua,
pequenos avanços contra um enorme desastre».
«Malhas que
o Império tece» por entre dedos de anéis e que ofereceram
um punho cerrado. Por isso, hoje, os timorenses que restam
olham o lugar vazio do nada-
dor-salvador, Portugal, alguém que julga ter já
vivido o suficiente para merecer o privilégio de recordar
e deixa que Timor desapareça do ecrã,
como quem cancela a última série
sobre o Império, reconhecido olhar de
antiga posse e de história
um silêncio povoado de ruídos no outro extremo da vida.


(de O Barco Vazio, editorial Presença, 1994 - colecção forma)


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