31.10.11


ALBERTO DE LACERDA


García Lorca e o poema como superfície plana

Lorca continua a ser obscurecido pelo prestígio do pitoresco que primeiro impôs a sua obra. Não há nenhum crime em ser pitoresco; o problema é que nenhum poeta atingiu a grandeza só através do pitoresco.
Há muito admirador inteligente de Lorca que o vê demasiado à luz do seu espanholismo, do seu charme andaluz, esquecendo outros aspectos. Esse espanholismo existe, esse charme andaluz é inegável. Mas a contrapor ao luxo das imagens, à exuberância de cor, ao sortilégio rítmico, eu queria salientar um Lorca que trabalhou a linguagem com mãos depuradas, quase ascéticas.
PRIMERA PAGINA 
Fuente clara.
Cielo claro.
¡Oh, como se agrandan
los pájaros!
Cielo claro.
Fuente clara.
¡Oh, como relumbran
las naranjas!
Fuente.
Cielo.
¡Oh, como el trigo
es tierno!
Cielo.
Fuente.
¡Oh, como el trigo
es verde!
Céu, fonte, pássaros, laranjas, trigo: o poema cresce à volta destes substantivos, quase que consiste exclusivamente dessas palavras. Só tem três adjectivos: claro, no masculino e feminino, tierno e verde.
E é um poema prodigioso, pela força de presença, e não – repare-se – pela evocação. Devido à tensão imagística, que é desconcertante (pois são palavras isoladas que se tornam imagens), o poema é-nos apresentado como uma superfície plana, chata – tela ou parede, e não espelho, muito menos mar, ou rio, superfícies moventes, rumorosas. Esta energia horizontal trata as palavras como blocos, atendendo mais à sua densidade do que à sua transparência. Não se trata de poesia plástica no sentido superficial e perigosamente impreciso em que a expressão tem sido usada. Não se trata de transposição pictórica. O poema acontece na própria tessitura rítmica, vai acontecendo palavra por palavra aos nossos olhos. Um acontecer não gradual: lêem-se poemas deste tipo plano como quem lê um quadro. Dizem, mas não contam. Nem há metamorfose.
CAZADOR
¡Alto pinar!
Cuatro palomas por el aire van.
Cuatro palomas
vuelan y tornan.
Llevan heridas
sus cuatro sombras.
¡Bajo pinar!
Cuatro palomas en la tierra están.
O poema torna presente, de forma instantânea, algo que só pode existir em situação poemática e desdobrada: biombo não-narrativo. As quatro pombas, o ar, a terra, são objectos que só têm vida própria no poema, enquanto o lemos. São unidades concretas dum edifício que acaba por ser abstracto. Tal poema não é edifício simbólico. O poeta fundiu-se de tal forma com as palavras que as fez explodir de dentro. Eu ia a dizer: passam a ser outra coisa. Mas não é bem isso. O processo é mais subtil, mais panicamente sensual: passam a ser o acto de ler o poema. Mais do que em qualquer outro poeta, cada poema de Lorca é um ritual. Ritual tem milenariamente a ver com teatro, teatro sagrado, mas é um disparate dizer que Lorca foi sobretudo dramático ou sobretudo lírico. Foi as duas coisas.
Dirão que é perversa a minha escolha de poemas. Mas vejamos como este processo verbal também funciona em passagens do livro mais célebre de Lorca, o mais carregado de espanholismos: Romancero Gitano. Repare-se nas superfícies planas sobrepostas:
Verde que te quiero verde.
Verde viento. Verdes ramas.
El barco sobre la mar
y el caballo en la montaña.
O aparente non-sequitur visual não tem raiz nem intenção onírica. Estes versos são alheios a qualquer noção, voluntária ou involuntária, de profundidade ou de subterrâneo psicológico. Mas o resultado é mágico. Magia das superfícies sagradas, sobretudo a pele e a terra (com as suas águas), que as sabia sagradas, como pagão que era, Federico García Lorca, um dos poetas mais soberanamente pagãos de todos os tempos.
A sua intuição de tradições antiquíssimas, menos perdidas (felizmente) do que se crê, o aspecto inédito que ele dá à possessa vivência dessas tradições têm um paralelo na pintura espanhola: Miro. Joan Miró, eivado da alegria grave dos iluminados, é o homem do insólito fabuloso, da lava enigmática de vulcões pré-cristãos. Lava sem as hesitações mórbidas do século, lava exaltada e exultante, de quem habita naturalmente o mistério e o maravilhoso, sem perguntar nem responder (acusa, às vezes, e Lorca também: outra história, outro capítulo). Lorca e Miró são surrealistas no arcaico; «no Antiguo», diria Almada, carregando muito as últimas vogais. Mas Miro não pinta símbolos. Entre Miró e a pintura não há intermediários. Entre o divino Lorca e a poesia não há nenhum intermediário. Nenhum mal-entendido.

Boston, Julho de 1973.


(in Colóquio Letras, número 16 - Novembro de 1973)

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