RUY CINATTI
IMPROPÉRIA — 1960
Que venha a luz da terra iluminar a treva.
Que venha a luz do céu iluminar a treva.
Que venham ambas, numa só, iluminar a treva.
Trazer conhecimento;
Visão, sobretudo visão pra quem a pede.
Pra quem a não pede... mas que venha cedo.
A hora é de pasmar, calamitosa.
A hora funde a espada nas entranhas.
A hora é de comer raízes frias
Ou de tecer mais espessa a teia que nos cobre.
fbrque nem tudo se perdeu, nem tudo
É como quer quem se vendeu aos poucos
A outrem ou a si — pior que tudo.
Porque nem sempre é preciso descer escadas
Perseguido pelo fantasma que em nós vive.
Porque ainda há vozes traiçoeiras
Capazes de indicar caminho ignoto.
Eu canto, mas imploro, eu invoco
A multidão dos anjos debruçada
Sobre o ser vivo, sobre um corpo morto
Geladamente; iluminado apenas
Por assassinos focos...
Eu canto: sonho e vivo, mas não tremo,
Invoco de novo os anjos — testemunhos
Calados, pacientemente aflitos
Do mal que cresce;
Nos afunda, afoga
Em cada um de nós.
Porque tudo se perdeu ou perde.
Nem tudo é como queríamos que fosse
Sonhado ou procurado...
Porque nem sempre a fome é saciada,
Menos a sede, ainda a mais violenta,
Eu canto, eu imploro, eu invoco:
Que venha a luz da terra iluminar a treva.
Que venha a luz do céu iluminar a treva.
Mas se a hora é de comer raízes frias
(Meus queridos anjos tão abandonados...)
Que venha Cristo em fogo alimentar-nos!
(de Memória Descritiva, 1971)
Cinza, Rosa Oliveira, Tinta da China
Há 36 minutos
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