DÓRIS GRAÇA DIAS
PREFÁCIO
Dos livros. Que poderia ela dizer acerca desses objectos
inteiros? Gostava deles velhos, mexidos, a cheirar a pó. Com as páginas
insuportavelmente lisas, sem marcas de manuseamento, apenas as das lombadas
quebradas pelo uso; sem indícios de dedos suados, mas repletas de sublinhados,
de sinais, de notas à margem. Reescritas, reinterpretações.
Um livro escolhe-se. (Não, não vamos por aí. Não é o
conteúdo que nos interessa agora!) Escolhe-se. Queria-os com as páginas
cosidas, agarradas à capa forte, cartonada, com folhas porosas por onde se
infiltrasse um simples riscado de bic, ou uma superfície macia onde
sobrevivesse um borrão de tinta permanente.
Os livros por dentro têm de nos ensinar o manuseamento
deles, qualquer coisa mais do que a simples imagem deles. Colectiva imagem.
Plural imagem.
Gostava de espreitar os livros dos outros, tentar perceber
como eles os usavam. Um livro limpo desses borrões de leitura dizia-lhe pouco.
Essa tentativa de imacular, ou pretender imacular, uma leitura parecia-lhe uma
farsa. Um livro fez-se para sair das nossas mãos velho. O tempo da sua leitura
é o todo da sua vida. E uma infinita partícula das nossas existências,
proporcional ao volume das nossas leituras. Ler, ler, ler; é só isso que os
livros nos exigem. E nós a obedecermos. Sempre.
Pois não, um livro não é um objecto intocável sobre o qual
não possamos reescrever as nossas vontades, desejos, ensejos, ansiedades,
louvores, discordâncias. A um livro retribuem-se os sentidos que nos suscita. O
entrelinhamento, as margens, os inícios de capítulos, as folhas de rosto, todos
esses lugares em branco que o já escrito nos oferece, são lugares de manobra
aguardando que os preenchamos.
Livre-se, caro leitor, de lhe mostrar um livro ainda em
branco depois de lido. Ela encher-se-á de pressupostos e insultá-lo-á até à
exaustão. Abrir-lho-á numa página ao acaso, deter-se-á sobre uma frase e
questioná-lo-á sobre a sua incapacidade de ter passado por ela sem que se
sentisse forçado a retê-la por mais um bocado: na página, em si, na memória, no
tempo.
Um livro existe também para se descompor (atenção: ela disse
descompor e não decompor); em extremo, se não gostarmos de uma frase podemos
riscá-la, se não gostarmos de uma página podemos arrancá-la, se não gostarmos
do todo que o constitui podemos deitá-lo fora.
A reverência é um mau hábito e a literatura de que se fazem
os livros não gosta de maus hábitos. Aquilo que nos suscita prazer, que
identificamos como o gosto, porque se impõe como estímulo dos sentidos, só
adquire existência quando sujeito a uma escolha pessoal, feita de sujeição e
rejeição.
Censura? Sim, censura! Ela há-de querer ter eternamente essa
liberdade de negar páginas inteiras, de as destruir, aniquilando-as em si.
Fascista da sua própria biblioteca, lápis-azul, inquisitorial, rogar-se-á o
direito de formular indexes, que guardará juntamente com as cinzas desses
outros livros rasgados. Porque é esta a inteira liberdade que os livros nos
oferecem. A de sermos muito maus para eles, malvados até à saturação.
(de Biblos (Os Livros), Teorema, 2000)
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