17.8.09

JOAQUIM MANUEL MAGALHÃES

[excerto inicial de] «DAS VIDAS, MORTES DURAS»

O vapor em que Camilo Pessanha seguia para Macau — e por razões que para ele próprio ficaram completamente secretas — teve de parar durante alguns dias no porto de Angra. Falou-se de uma improvável avaria demorada, depois de alguns dias de tempestade, o que não parecia fazer sentido algum. Havia, contudo, maus ventos e o próprio ancoradouro agitava excessivamente o navio. Pessanha resolveu procurar alojamento na ilha, de tal modo lhe era insuportável o quotidiano a bordo, mas foi impossível encontrar sequer um quarto na cidade. Apenas na Praia da Vitória a viúva de um juiz lhe cedeu onde ficar, devido ao súbito acaso da descoberta de o professor de Macau ter sido colega de seu marido em Coimbra.
Camilo Pessanha levou consigo uma pequena mala de couro já muito gasto. O imediato, um holandês de Utrecht chamado Langendorff que também se interessava pela dinastia Ming, avisá-lo-ia de véspera, pois precisava de meio-dia para regressar, embora se sentisse no sorriso alheado do professor que lhe seria indiferente continuar a viagem ou perdê-la. A casa ficava numa zona abrigada da vila e, na noite em que chegou, ouviu ondas dobrarem para lá de um morro.
Na manhã seguinte, a viúva tinha já partido para a missa e a mesa, numa pequena sala perto da cozinha, tinha leite e pão. Uma criada baixinha perguntou-lhe se queria chá, por certo incomodada pelos escarros que juntava num largo lenço já bastante sujo. Uma bola, quase lhe parecera de trapo, bateu na vidraça. Um rapazote saltava do pátio de uma casa com muitas varandas de madeira. "É o menino Vitorino, anda sempre com livros e não tem modos de crescer As tias não têm mão nele, mas devem gostar assim. O senhor quer mais leite?"
A limpeza da casa e o vazio das paredes sem qualquer sentido de acumulação acentuavam-lhe o tédio. Os seus olhos mortos viam no lambril da sala o primeiro sol. Essa hora de luz acordava-lhe nos braços um torpor onde nenhum elixir triunfava da ausência do outro corpo caído, muito longe, sobre qualquer chão nu. Fechava os punhos indecisos entre o guardanapo e os talheres, o pescoço metido nos ombros, os pés como que suspensos do soalho, os olhos vesgos e de cor diferente, abraçado pela memória, pela despedida, pela desrazão.
Diante da janela uma liliácea, sorriu. Uma pseudo-árvore, o dragoeiro, inclinava os seus galhos inúmeros à pressão de antiquíssimos vento. Sangue de drago, ocorreu a Pessanha. A goma tinturial toldou-lhe uma gargalhada, mas enterneceu-o pensar que nos seus dias, o que fora um produto capaz de servir a imaginação da cor não passava de um decorativo elemento de jardim. Os fundos que foram líquidos ferventes, que depois formaram a manta de pedra viva dos polmes, dobravam-se agora na placidez que esquece os cataclismos, como dentro de si os olhos esqueciam enquanto olhava o canto vegetal. A frágil agitação das gingkobilobas, essas árvores ternas onde os raios de ventos e sol soçobram, ligava-o ao mundo dos seres extintos, mas ainda absurdamente sobrevivos.
[...]

(in Do Corvo a Santa Maria, com fotografias de José Sousa Gomes, Relógio D'Água editores, 1993)

1 comentário:

Graça disse...

Vim visitar o teu blogue... e adorei encontrar aqui um dos meus [ex]professores :). Para além de ser um escritor que muito gosto.


Voltarei. Bom fim de semana.