27.2.08

[de como um leitor acha não se haver desencontrado com a memória deste poeta #6]

RUY BELO

Ao escrever poesia, nunca me deixei levar por circunstâncias acidentais. Mas, menos paradoxalmente do que parece, circunstâncias acidentais explicam em parte e de certo modo essa poesia: a minha educação católica e mesmo mística, a reorganização da minha vida já perto dos trinta anos, a minha crise actual. Isto para só falar de mim. Mas, embora sem isso constituir um programa, tenho reagido às injustiças que vejo à minha volta e, como a poesia é por natureza revolucionária – renovação da sensibilidade, da linguagem –, não é de estranhar que por vezes sublinhe temas ou motivos participantes. A realidade imediata não se absorve, porém, de tal maneira, que não me continue a preocupar por exemplo o sentido da vida. Já em Aquele grande rio Eufrates havia linhas de ruptura, mas todo esse livro foi escrito num clima a que não tenho mais acesso. Boca bilingue é duplamente um livro de crise: nos temas e nas formas. E, em alguns poemas que posteriormente escrevi, soltei tais apelos que só me admira que certos profissionais da salus animi ainda não tenham tentado lançar-me uma mão.

(excerto de Entrevista 2, in Na senda da poesia, 1969 – original publicado em 1968, no jornal Notícias da Covilhã)

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