7.8.09

J. H. SANTOS BARROS

Para uma Arqueologia de ser Angrense


«A Prática é a Arte. Se desistis estais perdido». William Blake

Se quiséssemos usar uma figura de polarizadora linguagem do profissionalismo político mais em voga, poderíamos dizer que Angra é uma cidade que não tem dissidentes.
Os angrenses, aqueles que engrossaram as vagas da emigração açoriana, usam de um silêncio de catedral quando interpelados sobre a sua cidade de origem, seja para fins de inquérito étnico ou sócio-político ou em simples conversa de correr com o tempo. Há neste procedimento algo que se nega à decifração, por uma espécie de alquimia que opera em dois sentidos – a origem está em si, isto é, o angrense é a cidade; o texto da polis (primitiva evoluiu, por processos que remontam à cabala judaica, aos signos berberes e à exegese cristã filtrada pela filosofia do século V grego, para um texto do imaginário, geograficamente artocentista mas de efectiva comunicação sensual e afectiva entre os pólos: Corvo / Santa Maria; Europa/América; Mar de Sargaços/Mar Nostrum, etc. Atlântida remota ou do porvir? Lumen do quinto império do padre António Vieira e de Fernando Pessoa? Ilha de Vénus de Camões? A questão não reside aí, mas de certo são referências a reter e que Angra guarda das Portas Falsas à Memória.
Que isto possa ser destruído, arrasado? É duvidoso. O abalo sísmico visto como pulsão do magma oceânico duma natureza identificada com a unidade dos outros mundos perdidos, pode que seja um acto herético de Poesis. Mas quem negará, freudiano ou não, a ligação do instinto vital, sexual, ao instinto da morte, destrutivo? Gerar vida e consumi-la. Terríveis as consequências que todavia são uma pequenina parte do que podemos ver no texto de S. João, legível neste tempo pelos fragmentos que estão à vista: a poluição, os mísseis, as bombas de hidrogénio, etc.

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E os passageiros de Angra? Os castelhanos foi o que se sabe, mas legaram-nos uma cidade e uma ilha muralhadas, impenetráveis. No tempo histórico, o coração do arquipélago, por empatia, encolheu-se e voltou a distender-se para trabalhar com mais rigor e, armado embora, com uma suavidade indescritível. Pode-se imaginar um Capitão Boid, um qualquer corsário com êxito na abordagem da cidade, sem o contracanto dos idílios freiráticos? Honestamente, não. Pense-se nessa Angra como que recoberta da Praça às Covas de pinheiros mansos do Monte Brasil. E na periferia, as árvores e os frutos: laranjas, corações-negros, morangos, etc.
Lichonstein fez-se angrense. Os Van der Hagen açorianizaram-se a partir de Angra.
A «Angra no último quartel do século XVI» foi projectada por Emanuel Félix para um tempo a-histórico. Isto é, só é possível compreendê-la já fora do século XX e muitos de nós não chegaremos lá. O poeta recuperou o passado que persiste e é o sopro do futuro que nele (por ele, poeta) se anuncia.
Os cautos, os calculistas, hábeis manejadores, seres perfeitamente computatoriais, não entenderão, dirão mesmo que isto «(o texto)» é da ordem do trâns-curso, do transeoceanismo aéreo ou submarino. Mais tolerantes, os cultos, dirão que é assim que se faz a liberdade, e os bravos do Mindelo já o sabiam. Mas não se trata de angelismo demoníaco ou da intemporalidade grata aos homens que se desejam deuses, as representações aqui descritas.

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Angra mulher, poesia, religião, festa e tragédia. Uma autobiografia simbólica. Angra aprisionada pela história e da história das prisões (Afonso VI, Gungumhana, primeiros resistentes ao salazarismo). Angra da peste e da fome, da humidade que corrói os ossos e o trabalho. Do sol de Dezembro, do inesperado lago que é a sua baía em Agosto, da comunidade do justo com o seu senhor; Angra da paz e sossego e dos levantes! e esperas de gado bravo; dos ritos iniciáticos da maturação dos mitos endróginos ocultos e dos rituais públicos da missa das onze em S. Pedro e das sete na Sé. Angra da Lusitânia («aqui só já foi Portugal») e do Lusitânia '(«campeão dos campeões açorianos»). Angra para amar e detestar, seguindo a dualidade que a filosofia escolástica faz escorrer dos muros e dos musgos do seu seminário, dos seus templos. Há uma Angra para o gosto de cada um, para exaltar e dignificar a vida, para a ternura na solidão mesmo nas tardes de nada acontecer de jardim público e páteo da alfândega, nas procissões e coroações de impérios. Ternura que suaviza a solidão de alguns, poucos, humilhados; uma alegria rubra levantada nas festas populares, paradoxo em dique erguido sobre o isolamento – esse deserto' de água que se enxerga por aí fora. Desta Angra – a angra / âncora de cada um – nada caiu, e até os mortos hão-de ressuscitar segundo a fé comum.
A outra Angra, é quase só perceptível aos seus naturais e amigos. A que faz doer fundo. Refere a epistolografia dos dias de Janeiro, a dialéctica da «tragédia da rotina» dos abrigos precários, das necessidades antigas postas mais a nu, expectativas tão intensas carregadas de anos e anos de trabalho horizontalmente reduzidos a pó e escombros frente às poucas casas mais sólidas não destruídas frente aos egoísmos de aquário, frente a certa chantagem no contrabando da esperança. Tudo tão pobremente ilhéu! Mas seria realmente tudo, estaria o quadro completo? – Não, Do marmoto que não houve, uma vaga enorme de entusiasmo fraterno e solidário houve a unir os angrenses – falou-se por esses dias de experimentação concreta dum outro mundo e seria errado ver-se nisso meras refracções do pesadelo, da hipnose do terror, do sonambulismo.
Seria esse o mundo visionado pelos poetas quando faziam a lei? Era esse o mundo que Blake «viu» e dele nos transmitiu que Cristo, os apóstolos e os discípulos eram todos artistas mas que a Arte necessitava de prática permanente? Então era possível Angra mover-se do fundo dos séculos?
O texto remove-se.

(de S. Mateus, outros lugares e nomes, editorial Vega, 1981 – o chão da palavra)

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