7.9.09


ANTÓNIO CUNHA RIBEIRO

Nasceu em 1957 em Angra do Heroísmo. No seu primeiro livro, escrito aos 13 anos, Emanuel Félix interpela-o com estas palavras:
«Há gente tranquila. Há gente sossegada. Há gente tranquilamente sossegada. E um rapaz com um búzio pode quebrar a espessura da sua noite ou espantar o medo da sua vigília.
Ora acontece que tu, aos treze anos, és o rapaz com um búzio. E o búzio a figuração da poesia. Forma, significado, melodia. A receita do poema.»

Foi jornalista na Reuters e colaborou nos jornais Le Monde, Le Figaro e Daily Telegraph, além de outros órgãos de comunicação nacionais e regionais dos Açores. Foi também funcionário político da OLP (Organização para a Libertação da Palestina).
Além dos aqui referidos, publicou ainda, em 1985, Raiz Renovada, em edição da Câmara Municipal do Montijo. De entre os seus inéditos, encontram-se traduções de poemas de autores árabes contemporâneos.
Morreu em 1994.



PREFÁCIO

O poeta consome a dor
da desigualdade
nas palavras

O poeta desperta os outros
da fome calada

O poeta sente pelos outros
por eles vive
e fala


NOITE CERRADA

Ainda é noite
cerrada.

Agitam-se os braços
em vagarosos gestos de saudade
do dia que nunca virá.

Fantasmas espreitam
por entre as árvores
impedindo a nossa evasão.

De longe chegam gritos abafados
pelo rumorejar
da vegetação.

Uma única esperança nos resta,
camarada:
que o fogo nos ilumine
para que não nos percamos
na floresta.

E um desejo:
de que o dia claro
seja em breve
uma realidade.

(de Rapaz com um Búzio, Edição do Autor, 1971 – Colecção Gávea/Glacial)


Ritual

Provavelmente nunca iremos ver-nos, tocar a face um do outro, fecundar os lençóis brancos de uma cama. Mas se puder prefiro encontrar-te à saída cansada da usina, na tasca ou na rua. Aí melhor enfrentaremos o Sol e o Sal.
O sonho é o meu lugar e escrevo para que existas. Pelo caminho da escrita sofro longos orgasmos, e sei que tu também, qualquer que seja o teu rosto e o teu sonho. Qualquer que seja o teu caminho.
Por vezes cansa-me o halo dos mortais. É a distância que nos faz irmãos. Da mesma partida ao retorno, a mesma viagem de que nada fica. No fim foi só a vertigem, e só a vertigem nos acompanha.


Canto animal

Deixem o poema ser homem
e poisar na carne do homem

Deixem o poema ter saliva e ter medo
e sangue e braços que abracem
longamente em cada gesto cada gesto
o gesto do animal cio

até à exaustão que branca se derrama
e no branco se tinge de vida

o sal o musgo a fímbria dos corpos
que um no outro se completam


Bilhete para Tawfik az’Zayyad

Todas as celas fechadas
todos os pulsos sangrando urgência

Talvez amanhã
rasgaremos a pedra da noite
Talvez

(de Esta palavra escrita, Signo, 1985 - colecção Palco no Vento)


O SANGUE

Escrevo estes versos de grãos de terra na mão: eis a prova.
Tenho a certeza dos passos. Todos temos. Só no mais diferimos.
Era uma longa subida. Era a certeza
da nossa própria emigração. A mais bela,
a mais funda companhia. A perfeita igualdade do transporte
foi amassada em três quedas. Um braço, outro braço, um corpo
e a longa subida.

E agora: a tua pele
Revejo: é manso o mar.
E sei que o vento corre e que por ele
se colam no teu corpo lembranças de luar.

Descanso: os teus cabelos.
Entrego: já é dia.
Os caules são serenos
e no côncavo das mãos o sol nascia.

(inédito, gentilmente cedido por Luísa Ribeiro, irmã do Autor)

1 comentário:

Paula Raposo disse...

Esta poesia entra cá dentro da alma da gente. Obrigada pela partilha.