18.2.08

[Pretendo continuar #9. Morada nova, mas já agora completa-se a novena.]

LUÍS DE CAMÕES

Canto IX
(excertos)

[…]

Nesta frescura tal desembarcavam
já das naus os segundos Argonautas,
onde pela floresta se deixavam
andar as belas deusas, como incautas;
algumas doces cítaras tocavam,
algumas harpas e sonoras flautas,
outras com os arcos de ouro se fingiam
seguir os animais, que não seguiam.

Assim lho aconselharam a mestra experta,
que andassem pelos campos espalhadas,
que vista dos barões a presa incerta
se fizessem primeiro desejadas.
Algumas, que na forma descoberta
do belo corpo estavam confiadas,
posta a artificiosa formosura
nuas lavar-se deixam na água pura.

Mas os fortes mancebos que na praia
punham os pés, de terra cobiçosos,
que não há nenhum deles que não saia,
de acharem caça agreste desejosos,
não cuidam que, sem laço ou redes caia
caça naqueles montes deleitosos
tão suave, doméstica e benigna,
qual ferida lha tinha já Ericina.

Alguns que em espingardas e nas bestas
para ferir os cervos se fiavam,
pelos sombrios matos e florestas
determinadamente se lançavam;
outros, nas sombras que das altas sestas
defendem a verdura, passeavam
ao longo da água, que suave e queda
por alvas pedras corre à praia leda.

Começam de enxergar subitamente
por entre verdes ramos várias cores,
cores de quem a vista julga e sente
que não eram das rosas ou das flores,
mas da lã fina e seda diferente
que mais incita a força dos amores,
de que se vestem as humanas rosas
fazendo-se por arte mais formosas.

Dá Veloso espantado um grande grito:
«Senhores, caça estranha, disse, é esta:
se ainda dura o gentio antigo rito,
a Deusas é sagrada esta floresta.
Mais descobrimos do que humano espírito
desejou nunca; e bem se manifesta
que são grandes as coisas e excelentes,
que o mundo encobre aos homens imprudentes.

Sigamos estas Deusas e vejamos
se fantásticas são se verdadeiras.»
Isto dito, velozes mais que gamos,
se lançam a correr pelas ribeiras.
Fugindo as ninfas vão por entre os ramos,
mas mais industriosas que ligeiras,
pouco e pouco, sorrindo e gritos dando,
se deixam ir dos galgos alcançando.

De uma os cabelos de ouro o vento leva
correndo, e da outra as fraldas delicadas;
acende-se o desejo que se ceva
nas alvas carnes súbito mostradas;
uma de indústria cai e já releva
com mostras mais macias que indignadas,
que sobre ela empecendo também caia
quem a seguiu pela arenosa praia.

Outros por outra parte vão topar
com as Deusas despidas que se lavam;
elas começam súbito a gritar,
como que assalto tal não esperavam.
Umas fingindo menos estimar
a vergonha que a força, se lançavam
nuas por entre o mato, aos olhos dando
o que às mãos cobiçosas vão negando.

[…]

Oh que famintos beijos na floresta!
E que mimoso choro que soava!
Que afagos tão suaves! Que ira honesta,
que em risinhos alegres se tornava
o que mais passam na manhã e na sesta,
que Vénus com prazeres inflamava,
melhor é experimentá-lo que julgá-lo,
mas julgue-o quem não pode experimentá-lo.

[…]

(de Os Lusíadas, 1572 – transcrição conforme a Antologia de Poesia Portuguesa Erótica e Satírica, selecção, prefacio e notas de Natália Correia, 3ª edição: Antígona / frenesi, 1999 / 1ª edição: Afrodite, 1965)

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