31.8.09

JOSÉ ALBERTO OLIVEIRA

JORGE DE SENA E A RÁDIO MACAU


1.

Devagar, registando como tão facilmente poderia
esquecê-lo, fugiu de quê? Não sabe, ou não quer
responder? Favorecido pelo estrondo nocturno
das trovoadas e por urna língua que desconhece,
a sorrir manso, como se quisesse entender.

Foi a sua prática semanal e como se desembaraçou
da leitura! Outros se exilaram por razões
sérias e para cidades menos levianas, sem
preencher formulários e com dietas estreitas.
Renegou de vícios pequenos, supondo atingir a evidência

– uma configuração de alma sem acidentes,
uma vontade como terra de sequeiro e a memória
um filme mudo: poupando o álcool dos nervos,
que a procissão do tempo lhe fosse sendo escrita.

2.

Pudesse surgir da música um sopro deserto
e um destino imprevidente, náufrago que se obstina
em regressar do fundo até se agarrar a um destroço,
segue à deriva, repetindo trambolhões e quedas:
quem se condoeu dessa carta, quem esmolou

medida e regra? Por mais que o pão fosse
de trigo e a mesa trôpega, poderia recordar
quem lhe curou a sede, desprezar quem lhe compôs
cama de giesta? Alguém teria sempre melhor
razão do que a que tinha, ou maior queixa?

Uma história que ignorou auspícios, as dores
pequeninas de quem ficou em terra, por ter pontual
o relógio dos intestinos e a estrela dos navios
e a morada, como qualquer outra, incerta.

(de Mais Tarde, Assírio & Alvim, 2003)

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