10.10.14

SOUSA DIAS


[...] Como todas as artes, a poesia é experiência sensível, mas essa experiência não é a tradução estética da experiência vivida, não é a estetização do vivido. Não é a vida do criador que explica a obra de arte, quando muito é a obra que explica a vida, o modo de vida do autor. Impotência da psicologia em arte, ou a arte como uma antipsicologia objectiva, «poder do falso» (Nietzsche). Sem dúvida, cada poeta fala das suas experiências. Mas trata-se de experiências que são já uma evasão do vivido, a auto-ultrapassagem do vivido na sensação, em fulgurações visionárias de uma subjectividade alucinada, arrancada a si, posta na linguagem fora de si. Todos os poetas convergem neste ponto. «Os versos não são sentimentos, são experiências», escrevia Rilke (ou o seu heterónimo Malte Laurids Brigge), experiências literárias cuja matéria-prima não são pois vivências, nem mesmo a memória das vivências, mas antes, em termos rilkeanos, a sua marca «já sem nome» no poeta, o seu rasto anónimo no esquecimento de tudo: por exemplo a Infância pura tal como nunca foi vivida nem dada na recordação, o puro Amor como a invivível essência afectiva dos amores vividos. Mallarmé por sua vez falava da poesia como uma experiência sem eu, subtractiva do eu, como uma experiência de «destruição» do eu como ele dizia, mesmo se a experiência mallarmeana, ao encontrar no lugar do eu abolido apenas a linguagem e nada mais além dela, tendia a abolir com ele também a sensação, toda a sensibilidade, o 'pathos' poético. Paul Celan repetirá que «a arte põe o eu à distância», mas já antes Trakl aspirara a uma poesia «impessoal e saturada de visões», Pessoa autopsicografara o «fingimento» poético, a irredutibilidade da emoção poética à emoção psicológica, e Ruy Belo dirá que o poeta «imolou o coração à palavra». Eugénio de Andrade confirma: «a poesia é uma arte impessoal». Como o é toda a arte. 


(excerto de «Poesia, Arte Bilingue», in O Que é Poesia?, nova edição aumentada: Documenta, 2014)

Sem comentários: