28.1.04

VASCO GRAÇA MOURA

giraldomachia


que limites para o conhecimento de si mesmo
e a própria experiência do mundo? é costume
reflectir, usar o espelho, começar elas feições
investigar o seu significado melancólico,

entre a ambição e amargura e alguma vaidade
de chegar ao mundo a partir do nosso olhar
sobre o que somos e não somos. são questões
de profundidade de campo, de abertura objectiva,

de luz dos olhos que, diz o sermão da montanha,
são a candeia da alma, num relance intrigado
ou no relâmpago do flash mental. mental. coisa mental
é o retrato, sempre. nesse momento quem se

representa, fá-lo por vezes como não se vê,
mas se entende mais fundo
e tenta comunicá-lo desesperadamente
a outros que se propõem o mesmo exercício.

voyeurs, voyeurs somos nós todos desde pequenos,
logo a partir das sombras da memória. vejamos: giraldo-
machia
é o combate de gérard consigo mesmo, a procura
do que está para lá da sua cara. no que viveu e viu,

no que aprendeu e ainda não sabe de todo, no que o
vai transformando: a forma, o mundo,
iluminações e raivas, emoções, fantasmas. nunca-se. sempra-se.
quanda-se. assim todo o retrato é o movimento

da sua fixidez, dos seus limites. ondula, desfigura,
transporta e ironiza. vai a banhos e revela-se:
onde há nariz queixo e testa e boca e olhos, tudo se
desloca em tempo e espaço, aquém e além do espelho.

onde a cara se move porque a mão
assim marcou as órbitas,
no silêncio total em que a identidade se perscruta
o eu se desregula.

(de Giraldomachias, onze poemas e um labirinto sobre imagens de Gérard Castello-Lopes, Quetzal e Casa Fernando Pessoa, 1999)

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