27.1.04

JOSÉ TOLENTINO MENDONÇA

TRÊS ÍCONES

I.


O custo das casas por incrível que pareça
sugere a possibilidade de uma outra vida
a alma não mora debaixo do seu tempo
traz de tão longe a fragrância
de uma vegetação que cresce

Mais abaixo junto à represa
um trecho de sombra
o pinheiro que a estação tornou amarelo uma última vez
ao rumor dos caçadores, a corrida atrapalhada da perdiz

nas vagas recordações
a orla de uma alegria que ninguém viu

Só os insignificantes flutuam
ao vento contínuo de Deus


II.

E depois quem pode ainda dizer
que a percepção é o saber absoluto?
Ulisses regressa a uma terra misteriosa
do passado traz apenas uma ferida
e o corpo ferido dilata do horizonte
infinitas sugestões

A inocência é uma fonte feroz
minuciosa e lúcida até à impiedade
ninguém disse ainda como ela
imprevistamente nos volta
para as imagens mais remotas
de Deus

Giorgio Armani tinha declarado
a um jornal inglês: «o luxo desagrada-me,
é anti-democrático.
Quero agora homenagear os operários de todo o mundo».
E eu só pensava em São João da Cruz
enquanto ouvia por repetida vez
«a moda substituiu o luxo
pela elegância»

João da Cruz desataria a falar
de coroas, resplendores, casulas
véus de seda, relicários de ouro e
diamantes

Para lá do jogo das nossas defesas
qualquer coisa interior
reivindica a intensa solidão
das tempestades, dos campos alagados,
dos sítios sem resposta

O teu silêncio, ó Deus, altera por completo os espaços


III.

A vastidão avança por aquilo de que falamos
a sua beleza evoca ao de leve (sempre ao de leve)
o que o tempo nos aconselha
com mensagens que parecem sem sentido
um telefone que toca apenas uma vez
os faróis deixados acesos ao entardecer
aquelas falhas de memória que nos perturbam
pois não são falhas apenas

Talvez a completa escuridão nunca tenha existido
Talvez nos momentos decisivos
regresse por alguma passagem o desconhecido

Um milhão de cintilantes lanternas de papel
sobre o rio
mas a alma repete a sua pergunta eterna

(in As Formas do Espírito - Arte Sacra da Diocese de Beja, Departamento do Património Histórico e Artístico da Diocese de Beja, 2003 - tomo I, estudos e primeira parte do catálogo)

Sem comentários: