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A vida é banquete ou fome, como diz o velho provérbio chinês. Hoje é mais fome do que qualquer outra coisa. Sem precisarmos de recorrer aos ensinamentos de um sábio como Freud, é evidente que, em épocas de fome, os homens se comportam de maneira diferente do que na abundância. Em tempos de fome, andamos a vaguear pelas ruas com um olhar voraz. Olhamos para o nosso irmão, vemos nele um suculento naco e prontamente lhe armamos uma cilada e o devoramos. Fazêmo-lo em nome da revolução. A verdade é que não tem muita importância aquilo em nome de que o fazemos. Quando os homens se tornam irmãos tornam-se também ligeiramente canibais. Na China, onde as fomes são mais frequentes e mais devastadoras, já tem acontecido as pessoas ficarem tão histéricas (por trás da famosa mascara oriental) que, quando vêem ser executado um homem, se descontrolam e riem.
A fome em que vivemos tem a peculiaridade de se verificar no meio da abundância. Trata-se mais de uma fome espiritual, poderíamos dizê-lo, do que uma fome física. Desta feita, as pessoas não lutam pelo pão, mas pelo direito ao seu pedaço de pão, distinção que se reveste de alguma importância. O pão, em sentido figurado, está em toda a parte, mas a maior parte de nós tem fome. Especialmente os poetas - poderei dizê-lo? Pergunto, porque é tradição os poetas passarem fome. É, portanto, um pouco estranho vê-los identificarem a sua fome física habitual com a fome espiritual das massas. Ou será o contrário? Seja como for, estamos hoje todos esfomeados, excepto, sem dúvida, os ricos e a burguesia presunçosa, que nunca souberam o que é passar fome, nem espiritual nem fisicamente.
Inicialmente, os homens matavam-se uns aos outros na mira imediata da pilhagem - alimentação, armas, utensílios, mulheres, etc. Tinha sentido, embora nem caridade nem compaixão. Hoje somos compassivos, caridosos e fraternos, mas continuamos a matar da mesma maneira, e matamos sem a mínima esperança de atingirmos os nossos objectivos. Matamo-nos uns aos outros em benefício dos vindouros, para que estes possam gozar de uma vida com mais abundância. (Grande treta!)
(...)(excerto da Carta aberta aos surrealistas de todo o mundo, in O Mundo do Sexo e outros textos, tradução de Ana Luísa Faria e Miguel Serras Pereira, publicações Dom Quixote, 1987)
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