Tentações de Santo Antão, c. 1500
Óleo sobre madeira de carvalho
131,5x53 cm / 131,5x119 cm / 131,5x53 cm
Museu Nacional de Arte Antiga, Lisboa
Óleo sobre madeira de carvalho
131,5x53 cm / 131,5x119 cm / 131,5x53 cm
Museu Nacional de Arte Antiga, Lisboa
JOÃO MIGUEL FERNANDES JORGE
TENTAÇÕES DE SANTO ANTÃO
Lá está o peixe de espada à cinta e o grande fogo em noite
de natal. O capitão da barca voa altos céus e o ovo deu à
luz o pranto das Eríneas. Tudo o que quisermos está aqui: a
virgem cavalgando uma árvore num céu gelado, manto azul,
mãos orantes, segue-a a gadanha da morte e a ave e outra ave
e os peixes e outro peixe. O facho aceso aquece a paisagem,
o descalabro da vida e o humano, de tão humano o quero, diz
em voz baixa o timoneiro enquanto passa sob a neblina.
Sob o som de pesadas botas ninguém, alguém anuncia a mesa
posta: frutos silvestres, pedaços, pedacinhos de ferro: o
grande diospiro abre sob o comando do símio: mendigos,
desejos obsessivos, pequenos monstros desembarcam em murmúrio.
Dias inteiros, séculos ergueram da água baixa e pútrida altas
torres. Perdeu-se de esmolas a cidade e o monge reza, meio-
-louco, fantasiador. Nos campos não há pastos nem rebanhos,
mas os sinos anunciam a ração da tarde e logo a da manhã.
Um manto rubro, uma serpente, as raias, o homem cabeça e pernas
e as figuras anunciam a novidade do feminino corpo nu:
continuam a passar, obstinados, em fúria, agora com lentidão
eterna, os meses e os anos, tempo e sempre mais tempo. O
peçonhento sangue dos humanos é igual ao sangue dos répteis:
gerações erguem gerações e o homem de negro encerrado no focinho
de urso formigueiro leva o alaúde. O mocho contempla a guerra
da noite e todos escutam impronunciável palavra a coberto de
maravilha: coxos, sem orelhas, órbitas vazias e logo plenas
de cega luminosidade; ninguém, todos experimentam a mente do
santo. A longínqua visão reflecte-se. Na gruta, um Cristo
crucificado assiste os animais e as árvores, o devaneio, as
casas, o derruir da verdadeira e profunda identidade. Fascinado,
estático, possuído pelo entusiasmo, o frade morre no
espelho: entre o seu rosto e o teu rosto inscreve-
-se e logo se rasura a pálida e terna forma de um rosto de
criança: traz guelras no exacto lugar da respiração: talvez
por isso não tenha a coragem da esperança quando
acompanha a barca dourada que se desloca para o sol e
de novo aparece e de novo desaparece —
ave do sonho dentro do sonho.
/Hieronymus Bosch, c.1500/
(de Museu das Janelas Verdes, Relógio d'Água editores, 2002)
1 comentário:
a guerra dos mundos
como assinatura em cada pedaço de matéria.
ainda assim "ave do sonho antes do sonho".
não entendo a plácida(alheamento?)contemplação do santo…
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