18.4.10

MANUEL DE CASTRO


ICH BIN EIN KROKODIL


COMO se a febre me tivesse cegado, aqui permaneço, desperto e todavia quieto, até ao momento em que algo vivo se agita (diária e regularmente isto acontece), se agita sobre o pequeno lago artificial cercado por uma alta vedação metálica, onde desde há algum tempo (quanto?) me encerraram.
Sou ainda bastante rápido: ao cair na água, o alimento — carne putrefacta, sem a cor atraente do sangue — produz um surdo «plop» e um instante fulguro depois eu encontro-me sob a superfície da água com a minha boca muito aberta no lugar onde submerge a dose quotidiana de, vida; ao fechá-la os dentes encaixam ruidosamente uns nos outros e o som propaga-se pelo minúsculo oceano circundante. Regresso lentamente à areia.
A carne. É uma matéria que se instala em mim, provisoriamente, é certo, porém que se incorpora no volume que constituo, perturbando-o, alterando-o. Até à defecação, ao uso total daquele alimento, eu sou qualquer coisa de, aumentado, de, por assim dizer, um pouco outro.
Privado de lutas e movimentos largos, a situação é todavia confortável; e esta quantidade de calor, de alimento, embora corrupto e insípido, a nenhum esforço me obriga, excepto o breve mergulho, a velocíssima deglutição.
Acontecem ruídos, vozes.
Inicialmente deixava os meus olhos seguirem uma certa curiosidade que os movia, lentamente, sonolentos, vagarosos, por sobre as coisas e a fútil agitação dos outros animais, principalmente aqueles, extremamente vivazes e inquietos, que rodeiam, de quando em quando, a alta vedação metálica que dá uma dimensão ao meu universo e uma medida (relativa, relativa...) ao meu corpo. Contudo habituei-me. Agora as vozes transformaram-se apenas no cantochão, no fundo sonoro da minha contínua sonolência. Dormito, morno.
O horizonte de que disponho sofre unicamente modificações subtis, quase imponderáveis, que aderem a esta peculiar posição em que me observo, intransmissível e integrada nos limites da minha existência total e absoluta. Os objectos, escravizados pela rotina das gradações sucessivas de claridade, vivem com uma paciência que me é também um pouco própria, submetidos à minha atenção letárgica e no entanto presente, presente, incapaz de os mover porém receptiva e perigosamente sensível. Envolvido por uma aura de líquen e forte temperatura, é uma tepidez húmida, salobra, espessa, que se me vai acumulando sobre a carcassa, como se o tempo esperasse construir um verniz baço que me defenda das mutações bruscas. Esta capa protectora é um sinal da mansa reconciliação que se desenvolve entre mim e o vagaroso universo silente de que participo. Areia, água, o metal das grades, as plantas aquáticas, os resíduos que de um exterior desconhecido para aqui são arrastados, os movimentos aparentemente absurdos dos animais excitados que me olham com uma repugnância oculta, disfarçada, todos estes elementos se dissolvem nas pequenas nuances abafadas que compõem o tom desta infinita vida de crocodilo, deste reduzido infinito da minha existência de sáurio, cujo comportamento, qualidade e alcance, absorvem, respiram a envolvente luminosidade tíbia e conferem permanência ao perpétuo movimento circular de todas as coisas.

(in Antologia da Poesia Portuguesa 1940-1977 - 2º volume, M. Alberta Menéres e E. M. de Melo e Castro (org.), Moraes editores, 1979 - Círculo de Poesia / original in & etc, 1968)

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