4.2.19

JORGE DE SENA


Antes de mais, reflictamos que, no estado actual da civilização, muita gente há, a esmagadora maioria, para quem a literatura não existe. E só os nossos desejos ou anseios humanísticos nos demonstram que, modificadas as circunstâncias, e tornado geral o hábito da leitura e distribuída imparcialmente a educação do gosto, aquilo a que chamamos as grandes obras literárias encontrará uma igual e equitativa receptitividade. De resto, só por si, o hábito da leitura não significa um conhecimento ou reconhecimento da literatura como tal. Mas, ainda que esse reconhecimento se processe em muitos leitores, daí não resulta que eles sintam necessidade de situar, correlacionar, comparar, historiar o que estimam, que os fira o apetite de o comunicarem a outros as observações que fizeram, ou que a literatura ocupe, em suas vidas, um lugar preponderante, absorvente, que seja ela o que dá sentido e estrutura a essas vidas. Do mesmo modo, estudar literatura não implica também um conhecimento ou reconhecimento dela, em extensão e em profundidade, cada vez mais se observa, no mundo de hoje, a tendência para limitar o âmbito do que se estuda, para isolar do resto o objecto de estudo, para elevar à contemplação satisfeita as últimas minudências de que se é capaz. Cada vez mais se observa, até, o curioso fenómeno de estudar literatura sem conhecê-la, evitando-se mesmo conhecê-la, preferindo-se as considerações críticas e a análise dos métodos críticos às próprias obras a que umas e outros se aplicam ou seriam aplicáveis. E uma atitude dessas de modo algum pressupõe que se pretenda ensinar ou viver o que, afinal, é já um objecto de segunda ordem. Também o ensino da literatura tende, cada vez mais, para o desconhecimento, a desestima, a não-vivência dela. De resto – e decorre da própria essência da literatura – teria de ser necessariamente assim. Porque a literatura não pode ser ensinada. Ensinar seja o que for é apresentar um instrumental adequado e explicar a maneira de uma pessoa tirar o proveito dele. Daí resulta que se ensina a escrever estudos sobre literatura, e estudos sobre os estudos de literatura, indefinidamente; ou se ensina a ensinar literatura. Quando afinal, aquilo que verdadeiramente, e do ponto de vista da literatura como tal, pode ser ensinado, não é uma literatura sem história ou uma história sem literatura, mas a consciência de que, como tal, e como sucede a todas as coisas ante a lucidez harmoniosa do que são e representam, a literatura não se basta a si própria, e só é literatura, verdadeira e autêntica literatura, quando deixa de o ser, isto é, quando ultrapassa, por sua própria essência, os quadros em que se define como autónoma e independente. O único ensino verdadeiro é este: o de que a literatura é um equilíbrio precário entre ser ela mesma e não ser tudo aquilo que se espera ou se pretende que ela seja.


(excerto do ensaio «Amor da literatura», datado de 1961 e incluído em O Reino da Estupidez - I, 3.ª edição: Edições 70, 1984)

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