17.9.07

JOÃO CAMILO

I


1

É de manhã, os pássaros
cantam. De que infinito guardaram
a nostalgia? Enquanto a desconhecida dorme ainda
ao lado da janela. E eu contemplo o cimo das árvores.

2

Ao lado da janela dormes.
Desconhecida.
E um rio, como esquecer, separa-te da luz.
Um peixe ou pássaro descansa na tua orelha,
a folha - ou som? - é cor nos teus seios.

3

O cabelo desviado da fronte
a construir a margem da orelha.
O seio nu no lençol branco,
página de livro nova
no cheiro e no olhar.
Ventre liso, céu, mar,
viola,
onde se esconde o acorde. Ao lado
da janela dormes. Desconhecida,
e eu sopro sobre as folhas do arbusto,
na solidão do silêncio.

4

O tambor do revólver
roda
à volta no teu sangue.
Melro inquieto das tuas veias.
O ponto de mira no cano
da pistola
descobriu o meu olhar,
acompanha-me:
quotidiano como os minutos
e segundos
do nosso encontro
na escada.

5

As tuas pernas tocam a claridade.
No calor da noite.
Perto das florestas,
na inclinação das colinas.
E aprendes com que colorir-nos
o dia.
Enquanto os teus cabelos acariciam o terror

E despertas repousada.

6

Os teu cabelos alongam-se,
roubam a cor à árvore
(é outono)
e a luz e brilham.
No esconderijo da noite.
O sono: estás distante,
tão calma.
Na sombra das árvores o silêncio
das colmeias
inquieta o pólen das flores.

7

Ao lado da janela,
desconhecida dormes.
Com o sono
- ponte de vidro -
E o teu pé nu.
E o ar que te respira
deixa de esperar

o azul da luz do dia.

8

As árvores em frente de casa
não perderam de vista o teu cabelo.
Imitam
o método de cair no ombro,
a linha, a curva lenta, a cor,
o sobressalto de tocar a orelha.
E eu?

9

Da adolescência das tua pernas,
da sua solidão,
o pequeno caminho conhece a sombra:
calor do mármore.
E o silêncio
- luz e água,
tensão -

que nelas se move.

10

Longe das florestas dormes
desconhecida.
Distante das montanhas,
das colinas.
O algodão do sonho separa-te da sombra,
um arbusto - ou árvore? - adormece no teu rosto.
E eu?

11

A água das fontes,
o calor dos campos,
pulsam no teu corpo.
Desconhecida,
no refúgio do quarto descubro o teu olhar.
Lago escondido, visto
do cimo da montanha?
Página, arbusto, árvore,
folha, peixe, som,

rio,
floresta,
melro.


(de Para a Desconhecida, 1983)

2 comentários:

ana salomé disse...

um poema de campo de algodão. muito bonito...

storytellers disse...

heeee! o textinho do zeca afonso veio daqui! continuarei a vasculhar na imensidão poética do teu blog à espera de encontrar outra pérola.

bjs