16.12.11


LÊDO IVO


ALÉM DO PASSAPORTE

A noite dá a sua lição de universo: as estrêlas caem. Suspensas no ar vazio, elas deslizam no céu negro, fulgem rápidas, desintegram-se. Mas êsses acidentes celestes não exprimem desordem ou fadiga. Estão inscritos na retórica do cosmo, onde tudo é ordem e rigor.

O tempo é uma mentira das êstrelas. Viajante, não sei onde estou, nem mesmo se estou. Na terra desprezada pelo estrondo rouco do jato, as fronteiras voam e os fusos horários zombam da ficção local dos relógios. E, entre o sono e a vigília, contemplo nuvens imensamente brancas no céu escuro, celeiro das estações.

De súbito, surgem debaixo das estrelas as ocasionais constelações terrestres: ilhas criolas, paraísos explosivos que se espraiam, no mar espumoso, como fragmentos de um continente esfarelado.

Banidas as estrelas, a manhã ocupa o céu e o mar. O leve frêmito vertiginoso anuncia que o avião vai descendo de seu abismo às avessas. Plea.se fasten seat. Um farol numa ilha e uma gaivota são os primeiros sinais da Terra. E ambos reiteram ao sol pálido o vigor cansativo dos símbolos.

Desembarco e é outono em Nova Iorque.



OUTONO EM WASHINGTON

Uma chuva de fôlhas douradas
cai e espanta os esquilos de Washington
que não podem catar suas nozes
sem que não sejam incomodados.

Insólito aguaceiro de dólares
atrapalha as pombas que passeiam
entre os sapatos dos intocáveis
e talvez gripados milionários.

O estrondeio dos aviões a jato
estilhaça nos ares de estanho
os direitos civis dos pardais
em vôo do Obelisco ao Potomac.

E o turbilhão de vento e folhagem
crispa a orquídea na loja de fôres
entre o Bank of America e a noite
nos abrigos contra a bomba atômica.

Uma tempestade de corn-flakes
cai sobre as moças em flor que vão
aos psiquiatras perguntar como
lidar com as máquinas do amor.

Chuva de apartes no Capitólio.
Republicanos e democratas
dão ao foguete chamado Apolo
um prazo para chegar à Lua.

Um anjo de goma e pepsi-cola
faz o pedestre apressar a passo
nas avenidas incandescentes
de olhos de vidro inquebrável e aço.

Na poderosa e marmórea Washington
cheia de templos greco-latinos
só a borracha da noite de outono
apaga as garatujas dos homens.



NOVA IORQUE

Como é bela a América, o país das gaivotas!

Do meu quarto de hotel, vejo os arcos do mundo
e as bandeiras de todos os navios.
Môças caminham sòzinhas no dia fluorescente.
A florista negra sorri entre as camélias.


(da secção América, de Estação Central, 2ª edição: edições Orfeu, 1968))

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