4.9.05

FERNANDO GUERREIRO

A câmara clara


Desenganem-se os crédulos, a poesia não é um espelho
nem nela o sujeito passa por um processo de revelação
compatível com o impressionismo mimético tão comum
nas fotografias. Se não conseguimos escapar à mecânica
de arrasto pela qual um indivíduo, mal pega na caneta,
passa para a palavra, no entanto, talvez seja pela iconicidade -
efeito de relevo na linguagem, pelo próprio recorte das palavras
na sua espessura semântica produzido - que a estranheza
da poesia melhor nos surpreende e conjuga. Poder-se-á
pela palavra contrariar o carácter nostálgico da arte?,
o que nela existe de evocação de uma presença antiga
e erodida? Traindo-nos, a poesia ainda nos autoriza
uma forma branda de recusa: a dos frutos que se oferecem
aos favores do clima sem esperar o consolo de uma mão
que os proteja da sombra em que os contornos, na dúvida, se retiram.

(de A Balada de Liverpool e Bruxelas, in Bumerangue 04 - colecção Guarda-Rios)

1 comentário:

da. disse...

..a poesia...a poesia..o que será escrever poesia sobre poesia?..