VITOR SILVA TAVARES
Incensado, esmiuçado, proposto à circulação, Dubuffet está
no papo.
A não ser que não esteja. Vejamos como esperneia: «A arte é
por essência repreensível e inútil! e anti-social, subversiva, perigosa! E quando
não é isto, não passa de moeda falsa, manequim vazio, saco de batatas.»
Ora há coisas que não se dizem. Pior: que não se pensam. Muito
pior: que não se fazem. Ao dizê-las, pensá-las, fazê-las Dubuffet conspurca o território
sagrado da Arte e da Cultura, hostiliza os grão-sacerdotes, dá provas de uma
perigosa heresia libertária. Então a gente aplaude-o e ele recusa-se a ser dos
nossos?
Então a gente divulga-o e ele, em troca, ofende-nos? Então a
gente compreende-lhe a bizarria de artista e ele, ainda por cima,
ridiculariza-nos? Então a gente cumula-o de análises suculentas e lindos
adjectivos e ele desautoriza-nos, enxovalha-nos, agride-nos? Pois bem: vamos
amá-lo por isso mesmo, vamos ser masoquistas, vamos digerir-lhe, deliciados as
irritações, os furores, as apóstofres. Queira ou não queira, nós, a cultura de
massas, vamos digeri-lo.
«A cultura tende a tomar o lugar que foi outrora o da religião.
Como esta, ela tem agora os seus sacerdotes, os seus profetas, os seus santos,
os seus colégios de dignitários: o conquistador que visa a sagração apresenta-se
ao povo já não apoiado de um bispo, mas de um prémio Nobel. Agora, é em nome da
cultura que se mobilizam e se pregam as cruzadas. É ela agora o ópio do povo.»
(Jean Dubuffet).
Como se vê, o artista é mesmo difícil de tragar. Nega a
cultura no momento em que ela serve de arrimo a tanta boa gente.
Mas: que cultura?
A «asfixiante cultura».
[…]
Sendo pois contra os museus, contra os mercados das vaidades
e dos valores, contra toda a forma de institucionalização das artes, Dubuffet
propõe [no livro Asphyxiante Culture (1968)], por isso mesmo, o que afinal
vem praticando: para além das noções impostas, uma arte no seu estado bruto,
original primitivo, criação simultaneamente individual, pessoal e feita por
todos, livre de toda a ganga intelectualista, descondicionada, descomplexada,
em revolta permanente, em permanente amour fou. Utopia? Não: recusa do
obscurantismo programado pelos clercs da cultura e seus beneficiários. Porque,
di-lo Dubuffet, «os homens de cultura estão afastados do artista como o
historiador do homem de acção». Ao artista compete pois fazer da sua arte uma
contestação vivificante.
(excertos de «Dubuffet: Contra a Cultura», in textinhos, intróitos
& etc, Pianola editores, 2017 / original in Diário de Lisboa – Suplemento
Literário, 19 de Setembro de 1968.)
JEAN
DUBUFFET
«Borne au Logos V» (1967)
Colecção Berardo, Lisboa, Janeiro de 2018
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