FAROL
Cabo de S. Vicente
Definem-me espelhos trazidos de bem longe,
madeira imputrescível e bronze e tantas horas
de solidão, detrás desta umbela que se abre no limite da arriba;
a lampejos adormecida, morta, hirta,
eu mesma mar adentro, minha vigia e meu mar.
LEMBRANÇAS
Em algum lugar seu, pessoal e distante,
ocultam as imagens seu diário sentido a que mal chego,
e acuso-me de usar cada vez, ao dizer-me,
idênticos silêncios quebrados contra minha alma,
embora na noite escura ainda me acompanhem,
me acalmem ou rejeitem, sosseguem ou aflijam,
me penetrem no exacto coração de sua história
e me afastem do uso natural da lembrança.
FERIDA
Quando um signo adverso em mim se instala e me enche
de vazio, corrente vida acima prossigo, o coração aberto
— e sua fábrica antiga — a uma ferida de névoa
em minha porção humana encomendada,
para tornar em estilhas o córtice de um vento
que em seu punho me abafa. Ninguém demora nada
já passado. São só as trevas que voltam
e se afastam a fugir, deixando chaga idêntica
após cada regresso. E eu gostaria, às vezes,
de ficar para sempre entre os caniços.
VIAGEM
Não sabemos sequer o que somos, mas isso
conduz-nos: continuam a andar nossos comboios.
Passa outra composição pelo carril oposto
e não há nenhum adeus, fingindo-nos os mesmos;
os mesmos, e seguindo, sabendo sem surpresa
nem memória. Outra vez a estação e outra vez a sineta.
Volta a arrancar a tarde e mascarra-nos seu fumo.
A CAMINHADA
Éramos gente afeita ao dom da mansidão
e à vaga lembrança de um caminho para um sítio.
E ninguém deu a ordem. — Quem saberia seu instante? -
Mas todos, ao mesmo tempo e em silêncio, deixámos
o abrigo habitual, o lume aceso que enfim se apagaria,
as ferramentas dóceis pelo contacto com as mãos,
o cereal crescido, as palavras a meio, a água a derramar-se.
Sinal nenhum chegou. Pusemos-nos de pé.
Não voltámos o rosto. Começámos a andar.
(in Antologia Poética, tradução de José Bento, Assírio & Alvim, 2000 - documenta poetica / original de La Pared Contigua, 1989)
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