2.10.05

DINIS MACHADO

Qual é o lado cómico disto?


Uma das primeiras grandes revelações da minha infância, ao surpreender as coisas, foi verificar que me interrogava, invariavelmente, assim: qual é o lado mais cómico disto? Os desfiles militares, as cerimónias religiosas, os cumprimentos obsequiosos e confrangedores, os adereços excessivos da autoridade, as exigências rígidas da hierarquia, os compromissos artificiosos. E eu: qual é o lado cómico disto? Daí a fazer a pergunta interior em qualquer situação dramática, foi um passo. A doença, a brutalidade, a estupidez, a intolerância, a maldade pura, a alucinação despótica - até o leito do sofrimento, o leito da morte. E eu: qual é o lado cómico disto?

(...)

Quando a infância começou a ser perturbada por desentendimentos mais amplos com o real, insisti na defesa da minha alegria, do meu prazer de viver. E até na dor que retirava dos que amava (dos meus avós, das minhas velhas tias, por exemplo), e até na morte, que sempre me surpreendia, protegia-me com essa frase defensiva, essa armadura de sol, de chuva e de subir a escada a quatro e quatro.
Creio que os cómicos do cinema me compreendiam melhor do que ninguém. Habitavam o coração do desastre com a desenvoltura, o corpo de borracha e a paciência evangélica dos grandes missionários da naturalidade.

(excerto de Reduto Quase Final, Bertrand editora, 1989)

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