FERNANDO GRADE
"OS MELROS AZUIS SÓ CHEGAM AMANHÃ"
(...) Ferreira (chamo-lhe assim, por uma questão de pudor), era um contumaz vendedor de pássaros, mormente melros - sua especialidade -, para os quais utilizava um reclamo sui generis:
"Olhem bem esta maravilha!!! São os melros mais bonitos do mundo!!! Ainda mais bonitos que os melros azuis que vendi ontem..."
A verdade é que o Ferreira estava convencido do que afirmava. Tinha os olhos atravessados por uma névoa... Desregulava..., a espaços. E os passantes faziam chacota.
- Oh senhor Ferreira - metia-se um rapazola na conversa satírica -, quais deles é que são mais azuis, as mélroas ou os melros?
À volta, a matula ria. Os melros são sempre pretos, a plumagem negra, como o pássaro dentirrostro de que fala o poeta Abílio Guerra Junqueiro. Eternamente pretos, de carvão, e com o bico amarelo vivaz, aqueles melros azuis do Ferreira eram bons acicates para a hilaridade das pessoas, e davam a medida de alguma loucura mansa que circulava no sangue do vendilhão de pássaros...
Muitos anos a fio, não soube patavina do bom Ferreira. Teria morrido? Uma destas tardes - que espanto! -, defronte da igreja da Memória... ecce homo! Era ele em carne e osso, terrivelmente mais velho, as três gaiolas do costume, e mais escalavradas, e, dentro, melros melros, negríssimos de dorso, o bico da cor dos limões... Olho para a paisagem ao redor, e tremo. Sim, foi ali mesmo que os Távoras, ou alguém por eles, ou outros que a História camuflou, desferiam arcabuzadas sobre o rei José, e não o liquidaram. O rei galaró vinha da cama da amante, e...
Entretanto, o Ferreira grita:
Venham ver, venham ver, estes são os melros mais bonitos do mundo!!!...
O nosso herói encontra-se naquele sítio histórico; sem o saber, está fora do tempo, desconhece, porventura, que a igreja foi mandada erigir pelo Marquês, em acção de graças pelo facto de o rei dos Braganças não ter sido fuzilado na emboscada. Observo melhor: ao pé das três gaiolas com melros, o Ferreira colocou uma cadela cheia de carraças, bicho gordo, fedorento. O pêlo esparramado de cebo e porcarias diversas. Junto dos melros canoros, a cadela tetuda e nauseabunda constitui um quadro confrangedor: trata-se de o óptimo e o reles baixo. (...)
Reparo no incomum, os seus olhos de louco a haver, recordo-me que os ossos do Marquês de Pombal se encontram enterrados naquela igreja, e arremesso aos céus manchados de muitos pântanos...
- Oh meu bom Ferreira, então não tem melros azuis para vender! pergunto-lhe, como se o tivesse visto pela última vez há quinze dias.
O homem responde, responde sempre, os olhos lívidos de pedra:
- Os melros azuis só chegam amanhã.
(excerto de crónica incluída em O Bairro Cercado, Universitária editora, 1998)
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