28.4.09

JOÃO CAMILO

NAS ALÇAS DA MEMÓRIA


Chovia. Na minha memória.
E eu chorava. Mas não chorava.
Lágrimas ou as saudades das manhãs no campo
eu sou um ser remarcavelmente com saúde.
A água corria. Na torneira estornecia.
Ou entornava-se ou destorneirava-se
a mim é que ninguém vinha dizer
os hinos que se escutam nas banheiras
nas tardes em que o sol aquece porque sim. E porque não.
E amarela e vai descolorindo. As paredes.
Dos conventos. Os muros das adegas das aldeias
as torres das igrejas nas planícies. Histórias.
A minha infância que me caía ou escorria
não sei se dos meus pés se do tecto branco
da casa branca onde então seguia. Vivia
e ia morrendo. Mas vivia. Dava por isso
quando punha o cinzeiro na frente da mulher
em quem as minhas mãos procuravam recordar-me
de qualquer coisa em que não pensavam.
Se estar vivo é isto de tão triste e não saber.
Se saber é triste de tão isto e não estar.
Que sei lá. Quem o dirá ou o diria
a mim que com olhos verdes me arrependo
me arrepenteio nos cabelos dos meus dias? Assim?
Assim. Há caranguejos e outras banalidades
há a mesa em que me apoio e os prédios ao lado
de que serviria pô-los para cima? Assim.
É assim que se dá conta do olhar com óculos
que do buraco de madeira cavado no vazio
me lançava as chispas com que se misturam
à noite em casa os ócios e o desejo. E a raiva.
Mas quem dessa camisa com suor na manga
havia de extrair o papel branco
com o poema quase redigido? Uma camisa
é uma camisa. Nada a fazer. Constatar
que um homem dorme quando o sol circula
nas alturas pouco vertiginosamente. E a pressa.
E o binóculo. E morrer e pedir e esquecer
e esmolar com que se esmurre a cara
daqueles que nos têm ofendido. Que são
muitos. Eu estava e estive
tenho estado e revejo que estarei
para suportar o peso ainda desses anos
em que a camisa finalmente despedida
– ah as histórias que a gente inventa
para não ter de falar da viabilidade da vida.
Ou é nos intervalos do silêncio
que se rompem os vidros da janela
onde estivemos com ideias de voltar?
E não voltámos não revimos nunca mais
esse quarto de cama essa cama de quarto
esses bonecos espintalgados na parede.
Na parede branca. E havia a janela.
E o tecto era baixo e estava-se bem
ali certamente no outro dia de manhã
longe dos homens com aquele corpo
com aqueles olhos da desperdiçada rapariga.
E hoje é isto. Vaga recordação de natais que se perderam
olhos e lâmpadas ruas de cidade onde passámos
muito brevemente numa janela de comboio de viagem.


À HORA DO CAFÉ

Há salgueiros na margem e um rio sobe nas tuas pernas,
a planície começa na lenta rampa do teu seio.
Os peixes jovens exploram a areia,
conserva a montanha suave o segredo da solidão.
É não provocar no sangue que corre sobressaltos
enormes que é melhor. Mas a inocente
violência da infância tão cedo terminada,
a exigência áspera dos ossos dos joelhos?
Antes de ires, desconhecida, olha para mim.
Como se te bastasse estar ao meu lado no cinema
ou fôssemos depois de amanhã passear à tarde no campo.
Antes de partires, e nunca mais te verei,
de me pores, como à carne quase crua e doce, de lado
na tua memória.


(de O Ruído Fino, in A Jovem Poesia Portuguesa / 1, Limiar, 1979 – Os Olhos e a Memória)

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