31.8.03

[gosto muito de inventários IX]

[inevitavelmente]
ALEXANDRE O'NEILL

Inventário


Uma palavra que se tornou perigosa
Um marinheiro dum país «amigo»
Uma pobre mulher tuberculosa
E a mulher orgulhosa que persigo

A velhinha que passa no buíque
Um incêndio prestes a romper
E as ruas as ruas onde vi
O que ainda não sei ver

Uma praia elegante um estendal
De belos corpos indolentes
E as últimas mentiras dum jornal
A propósito de factos recentes

Um senhor absolutamente sério
Um doutor que esteve por um triz
P'ra fazer parte dum novo ministério
E um velho muito velho que nos diz


Avesso à multidão aos seus gritos de louca
Tenho contudo um grande amor ao Homem
Mas cuidado Uma ideia não vive sem o pão da boca
Por aquilo que não sou não quero que me tomem

Outro senhor absolutamente honesto
Ainda a velhinha do buíque
E o velho muito velho diz o resto
Diz o resto e é para que fique


Meu lema é conhecido minha voz muito menos
Mas o que digo chega ao vosso coração
Por caminhos discretos preciosos serenos
Como um selo raro a uma colecção

(E num silêncio que toda a gente ouvia
Só a mosca deu sinal de si
Dizendo com graça e ironia

Ó Cesário Verde como eu queria
Que estivesses aqui!)

(de No Reino da Dinamarca, 1958)

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