[gosto muito de inventários VII]
ANTÓNIO SERRÃO DE CRASTO (1613?-1685?)
(...)
Nasceu o menino como um leicenço, cresceu como uma erva má e teve tantas partes como as maleitas; porque o seu rosto era de sapata, o cabelo de estriga de linho, a cabeça de Monte-achique, os cascos de cebola, a testa de pão, as orelhas de abade, as sobrancelhas um arco de pipa, outro de ponte, as pestanas de vestido, um olho de couve, outro de alface, o nariz de lambique, as bochechas de odre, a boca de forno, os beiços de alguidar, os dentes de serra, a língua de trapos, os bigodes de Herodes, as barbas de pincel, o pescoço de grou, o peito de armas, a barriga de bichos, as costas de canastra, os braços de mar, uma mão de graal e outra de almofariz, as pernas de noz, as canelas de tecelão, um pé de cravo, outro de cantiga; e, porque não fique parte por descrever, tinha, para vossa mercê saber, cu de inglês, membro de justiça, túbaras da terra e tudo isto cobria com a pele de todos os diabos.
A estas partes de demandas que tinha do carnaz para fora se ajuntavam muitas adquiridas de portas adentro; porque sabia como gaita, falava como gralha, tangia um burro, cantava como um grilo, bailava como uma carapeta, era corrente como água em charco; tanto que chegou a ser homem de ganhar, vestiu-se com toda a bizarria: chapéu de sol, véu de freira, volta de dança, cabeção de sisa, camisa de muralha, ceroulas de horta, gibão de açoites, calças de frango, vaqueiro de gado com botões de fogo, mangas de arcabuzeria, com bocais de poço, punhos de espada, uma liga de dinheiro, outra de solda, com pontas de lança, uma meia anata, outra meia irmã, um sapato a bica do sapato, outro gato-sapato, capote de centos, espada de baralhas de cartas com maçã de cipreste, punho seco, cabos de sapateiro, folha de couve, bainha de entre ambas as faces, conteira a mulher de um conteiro, e todo o vestido tinha guarnição de soldados e era cosido com agulha de marear e linhas do exército.
(...)
(de Novela Disparatória do Gigante Sonhado, publicado como apêndice a Os Ratos da Inquisição, do mesmo Autor, pela editora Contexto em 1981, com actualização ortográfica e notas de Manuel João Gomes / 1ª ed: oficina de Pedro Ferreira, 1745)
POEMS FROM THE PORTUGUESE
Há 1 hora
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