3.6.10

GIUSEPPE UNGARETTI


OS RIOS

Cottici, 16 de Agosto de 1916

Apego-me a esta esgarçada árvore
abandonada nesta ribanceira
que tem a languidez
de um circo
antes ou depois do espectáculo
e olho
a imóvel passagem
das nuvens sobre a lua

Esta manhã recostei-me
numa urna de água
e como uma relíquia
repousei

O Isonzo fluindo
alisava-me
como a um dos seus seixos

Levantei
os meus quatro ossos
e deslizei
como um acrobata
sobre a água

Acocorei-me
junto à minha roupa
suja de guerra
e como um beduíno
me curvei para receber
o sol

Este é o Isonzo
e aqui mais que nunca
me reconheci
dócil fibra
do universo

O meu suplício
surge quando
não me creio
em harmonia

Mas essas ocultas
mãos
que me modelam
ofertam-me
a rara
felicidade

Rememorei
as épocas
da minha vida

Estes são
os meus rios

Este é o Serchio
do qual retiram água
há quase dois mil anos
gente minha campesina
e meu pai e minha mãe

Este é o Nilo
que me viu
nascer e crescer
e arder de inocência
nas vastas planícies

Este é o Sena
em cujas águas turbulentas
me debati
até me reconhecer

Estes são os meus rios
lembrados no Isonzo

Esta é a minha nostalgia
que em cada um
se me transparece
agora que é de noite
e a minha vida me parece
uma corola
de trevas


(de Vida de um Homem (Escolha poética), tradução do italiano por Luís Pignatelli, Hiena editora, 1987 - colecção Cão Vagabundo)

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