MANUEL RESENDE
Nasceu no Porto, em 1948.
É também tradutor, e o Quartzo Feldspato & Mica tem publicado, em exclusivo, algumas das suas belíssimas traduções.
É um dos coordenadores da revista de poesia e tradução Di Versos.
PREFÁCIO
Uma lágrima cai de leite sobre cinzas
Levanta um revoar de pó tão triste e sujo
Uma como que cortina de silêncio de olhos.
Ou será o silêncio só que após se segue?
Passaram tantos anos e os anos idos
Fogem entre cabelos como essas figuras
Que desfilam em frente ao mar no nevoeiro
E doem como dor aguda sob os ossos.
As amoras maduras destilam gargantas
De ácido puro. Longe desfibram-se os surdos
Últimos brados de uma multidão febril.
Mas será o silêncio só que após se segue?
Não te queixes já corpo não. Espera um pouco
Com mais um ano em cima do lombo riremos
Muito ao de leve muito do passar dos anos
Em nome da alegria dos anos passados.
Ou será o silêncio só que após se segue?
SONETO AMERICANO
No amplo clarão d'algum café concerto
do violino ciciam os sons o arco
suspenso no ar num gesto inconcreto
Nuances de mar ou suspeitas de barco
Impulsão musas Hiato aedo eolo
Que desse fim do mundo e desse medo
Transportas os sons os solos
As jusantes memórias a que cedo
Concressão do antes do sido do cedo
Café aquecido raiz das pernas
Nádegas e abertos olhos (Cerne as
Víboras vistas em segredo)
Evoca Baco chama o sútil gado
De Neptuno de Vénus e Vulcano
Sonhos de antes de sonhar nada
Universo feito dum só pano
Mas talvez Índias houvesse e Índios
Ouvisses cantar apaches e manitus
Se os ouvires os olhos cinde-os
Concede-lhes a honra de os ver nus
LIBERTINO BELISÁRIO EM SEU JARDIM
O godo Belisário, convertido ao gozo bizantino,
Arruma Rosa, a dos dedos sujos, contra os clássicos:
Lava-lhe o morco, subtil, do púbis.
Aventa-lhe o lábio à penugem, já, do lábio
Loira, portuguesa, importada das Caldas.
Coa-lhe a música das frautas pastoris
Que o Montejunto derrama pelas faldas.
Que creme lhe serviu! Que Grécia!
Mas esta jovem que desmamou das fraldas
Belisário, o plagiador, na biblioteca
Entregou-lhe um amor, apenas, de livro aberto.
E a Silvestre, um porco, um corpo, um peco
Essa pêssega arisca, essa pega,
Foi dar o sumo de sua lavra
Coxas esguias, fenomenais, abertas.
(de Natureza Morta com Desodorizante, Gota de Água e Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1983)
PROCURA A CARNE
Procura a carne a carne, e a ferida
Vai-se fechando nesse lento encontro.
Encerra-se o passado ponto a ponto,
Onde havia a dor vem a cicatriz.
Por si, não é feliz nem infeliz,
Essa estrada que em si a carne traça,
Um saber que não sabe, só perpassa,
E que por onde passa deixa a vida.
Nessa ruga aí vamos avançando,
O corpo amado vai envelhecer,
Que Urubu tempo junta estranho bando.
Isso que não é chamam-lhe viver.
Assim se faz o onde, o como, o quando,
O corpo o campo santo do prazer.
(in Di Versos 1, Outono de 1996)
Por exemplo
Por exemplo: os cheiros não têm nome
- Nem as nossas penas e alegrias.
Como separar o cheiro da alfazema, da urze, do beijo, dos corpos,
Da alfazema, da urze, do beijo, dos corpos?
As palavras cobriram com o seu mar
A maior parte da terra
E lá dentro já só vivem peixes mudos
E plantas meio descoradas,
Mas
Ameaçadoras
Ou aduladoras
Embateram impotentes
Contra as falésias onde
Começa o reino dos cheiros e da emoção.
Como dizer
O cheiro da alfazema, da urze,
Dos beijos ou dos corpos,
Ou disso tudo junto?
Só estando lá.
(in Di Versos 6, Outono de 2001 - onde se anuncia para breve O Mundo Clamoroso, nas edições Angelus Novus)
5.11.03
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