23.6.03

FRANCISCO JOSÉ VIEGAS
Nasceu em 1962, em Março no Alto Douro, Vila Nova de Foz Côa.
Percebe-se que gosta de fazer as coisas que faz: divulgar a escrita, a leitura e o bom gosto (nomeadamente em programas de televisão, na imprensa, na rádio e na internet); dirigir boas revistas (foi director da Ler uma data de anos e agora é da Grande Reportagem); escrever prosa (é provocatória a sua insistência nos policiais...) e poesia.

Ficam aqui dois poemas que não podem ajustar contas com o meu juízo nem com o do autor, mas aqui ficam...
[é que “Poesia é sempre outra coisa, fica sempre mais além. O verso ideal, por isso, não devia escrever-se.” - como diz o próprio FJV]

Quatro estações

como as luzes da cidade nossos olhos se acendem
meu amor. cai o teu braço sobre o meu braço.
vê como tudo amadurece de passagem como a flor
se muda em fruto como se chora pelo primeiro namorado

e como o dizê-lo nos custa. vê como o campo se muda
em montanha e o rio em água apenas e pedra
vê como é mudo o nascer das árvores o seu crescer
a monda do milho. vê como o calor sucede

ao fogo do inverno à neve que desce para o vale.
cai o teu braço sobre o meu braço. as uvas estão
no cesto entras na minha casa na minha
janela na minha cama vê como cai o teu braço

Sabedoria

gostava de saber dizer-te como se vem de longe
num pincel de rembrandt desde os lugares do junco
ou da selva ou da água ou só do norte e da neve

e nos sentamos aqui sob o azul dos plátanos: um
murmúrio incessante do mover das aves

suave é esta a sabedoria
conhecer os instantes gomo a gomo como um fruto
ainda verde a querer despontar iluminar-se e colhê-lo
breve nos nossos dedos inteiro

e sob a nossa voz a nossa boca o nosso olhar
não estar nenhum rumor nenhum silêncio nenhum gesto

(de fascínio da monotonia, FAZER, publicações livres, 1982)


Segredo final
[Lev. 20, 10]

Há uma estranha contiguidade entre tudo,
a crueldade e o ruído das velas nos moinhos.
Corredores profundíssimos prolongam a imagem
da sombra, a nitidez da clausura, o lugar

das redes abandonadas. Há uma estranha
contiguidade entre a paixão e a sua culpa,
a sede da alegria e a adoração da morte.

(de As Imagens, Caminho, 1987)

Sem comentários: