21.2.05

[só para demonstrar o equívoco de umas certas afirmações]

RUI MANUEL AMARAL

Eléctrico n.º 18


Tarde cinzenta de domingo. Chuva a bater nos vidros,
pouco trânsito desaparecendo nas ruas quase desertas do fim-de-semana.
Lembra-me as antigas tardes de Inverno
em que descíamos de eléctrico a avenida da Boavista
entre as pequenas histórias do dia e o vento frio
que crescia nas janelas.
Vagaroso como um caracol, o velho eléctrico seguia pela tarde,
por dentro da sua fina concha de sal.
Cinco mil metros de solidão até ao mar
e o meu amor a desaparecer sob uma nuvem de espuma.

Imenso o céu, intocado pelo brilhos das vastas ondas,
o mar tão branco enrolando nos cabelos,
a invadir os muros, a ecoar nas fachadas.
Homens e gaivotas remoinhando no vento,
os dedos claros como grãos de areia.
Por entre as árvores baixas da foz
o mar espalhava as suas sementes misteriosas.

Há muito que o eléctrico não desce a longa avenida.
Hoje lembrei-me de ti. A tarde caía para sempre
no coração sombrio deste longo Inverno.
Um resto de morte invadiu-me antes ainda de a noite nascer.

(in Diário de Notícias de 7 de Fevereiro de 1999 - secção DN Jovem)


CEUTA

Café Ceuta. Anoitecer. À minha volta as mesas estão vazias. Dois
empregados conversam ociosamente encostados ao balcão. A porta abre-se
(vento frio). Um homem entra. Senta-se do outro lado da sala. Um
empregado aproxima-se. O homem pede um café. O empregado afasta-se.
O homem tira um livro da mala preta e pousa-o sobre a mesa. Acende um
cigarro. Lê a primeira página. O empregado traz o café. O homem bebe um
pouco. Depois arranca a página e come-a. Lê a página seguinte. Acaba de
beber o café. Arranca essa página e come-a também. Apaga o cigarro.
Fecha o livro e guarda-o na mala preta. Levanta-se. Aproxima-se da porta
(vento frio).

Noite. As mesas continuam vazias. lá fora as árvores na praça falam entre si,
na sua linguagem nublada de anjos da distância.

(de Quartzo, Feldspato e Mica, incluído em Com faca e garfo - colectânea de Jovens Criadores 2001, Íman edições e Clube Português de Artes e Ideias, 2002)


You Are Here

Meia-noite no porto a um domingo de tarde.
O sol avança sem vontade, como um gato ensonado,
pelas amenas ruas de Fevereiro.
Os cafés rangem cheios de gente
acendendo e apagando eternos cigarros
impregnados de Inverno.
Os velhos cruzam a cidade,
aos pares nos autocarros,
de lá para cá e de cá para lá,
dormindo profundamente.
E os pássaros quase se deixam apanhar,
Flutuando como borboletas pesadas
Sobre os canteiros indolentes das praças.
Tudo isto se pode ver em plena penumbra.
E tudo isto Fevereiro arruma,
lenta e meticulosamente,
ao longo de uma interminável tarde de domingo.
E pronto. Mais nada.

(de Bronze, incluído em A Semiologia Segundo Tarzan Taborda - colectânea de Jovens Criadores 2002, Íman edições e Clube Português de Artes e Ideias, 2003)

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