12.2.06

JOÃO PINHARANDA

Álvaro Lapa (1939-2006)
"Que horas são que horas"


A sua obra é assumida como auto-biográfica, fortemente associada à literatura. Dizia que era um escritor que pinta. Um último conjunto de pinturas de Álvaro Lapa está até 7 de Março na Galeria Fernando Santos, no Porto. Ainda este ano, o Museu da Cidade, em Lisboa, poderá apresentar a exposição que estava a preparar no âmbito do Grande Prémio EDP, recebido em 2004

O pintor e escritor Álvaro Lapa morreu na madrugada de ontem no Porto. Tinha 66 anos. A sua obra é difícil de classificar apresentando-se como uma das mais singulares do universo contemporâneo.
Actuando sempre contra o "império dos finos estetas", assim o apresentou António Areal. A classificação surge no texto para uma exposição que, em 1969, o crítico Rui Mário Gonçalves organizou na Galeria Buchholz, em Lisboa. Areal foi dos poucos artistas que, em Portugal, escreveu produtivamente sobre arte. Anos antes, ele e Rui Mário Gonçalves tinham parado em Évora, a caminho de Paris, para verem trabalhos de uns jovens ainda sem passado e em que eles descobriram um longo futuro. Eram eles Joaquim Bravo, António Palolo, que morreram em 1990 e 2000, respectivamente, e Álvaro Lapa.
Logo em 1964, os três inauguram a Galeria 111, em Lisboa, com sucessivas exposições individuais. Bravo e, especialmente, Lapa estabeleceram-se, desde logo, numa linhagem de trabalho, que entroncava precisamente no exemplo nacional de Areal: uma arte que prescindia da formação académica (nenhum alguma vez andou em escolas de arte) e que fortemente se associava à literatura, à poética surrealista nos seus desenvolvimentos menos ortodoxos de Bataille a Michaux ou a Burroughs e relacionando-se, através deste escritor-pintor, com toda a riqueza da beat generation americana.
A inspiração formal de Lapa situa-o na linha das experiências da abstracção expressionista americana dos mesmos anos, de Kline a Pollock. Mas é, fundamentalmente, com os gestos heróicos através dos quais Robert Motherwell determina os fortes contrastes de negros e brancos e estabelece uma hipótese de paisagem descarnada e desconstruída, que a pintura de Lapa se encontra, nomeadamente na longa série Campéstico.
A sua pintura é marcada por uma dinâmica de narratividade - e o fenómeno funciona independentemente do facto de Lapa incluir muitas vezes longos textos nessas pinturas. A sua escrita tanto em livro como em pintura forma uma imagem funda, não apenas dentro da dinâmica língua (da sua semântica e síntase) como dentro do próprio corpo do leitor. O conjunto define uma inventividade de impossível partilha.
Toda a obra de Álvaro Lapa é, de facto, assumida como auto-biográfica, subjectiva e interior, é marcada por um programa de auto-conhecimento ou de auto-reconhecimento, como explicitam algumas pinturas que, sem mais, intitula Auto ou a criação de um verdadeiro alter ego na personagem de Abdul Varetti - de quem borda, em lona, uma vasta colecção de Profecias (1972).
A narratividade e a auto-referenciação assinaladas impedem (ou tornam relativamente inútil) a determinação de cronologias dentro da obra de Lapa. Ela é permanentemente pensada como circular e vertiginosa (abissal), permanentemente encenada, ela mesma como uma narrativa mas na certeza de que toda a espectacularidade deve ser crítica (disse em 1993 em entrevista ao PÚBLICO).
Nesse processo mobiliza um vasto universo de referências literárias e artísticas, algumas já referidas, e que sempre o coloca na margem dos que recusam a normalidade ("Do que eu vivo é da recusa", escreveu em 1971, em resposta a um inquérito de A Capital). Os nomes que escolhe para os seus Cadernos, homenagem a 18 escritores (que inicia com um não escritor, Freud), levam-nos de Celine a Kerouac, Rimbaud a Artaud, Beckett a Kafka, de Joyce a Henry Miller e esclarecem a dimensão de vida que tomava para si.
É muito significativo o recenseamento das formas e soluções compositivas a que obsessivamente recorre, de pintura para pintura, de série para série ou entre os desenhos e as pinturas. A falésia, o mar e o céu ou a cabana, aparecem nas suas pinturas de finais da década de 1960 e inícios da de 70. Nesses anos, Lapa viveu em Lagos, antes de se fixar no Porto onde leccionou em Belas-Artes e criou um campo magnético de influências. No Algarve surge também a Mesa e o Milarepa, silhueta de sábio budista que irá acompanhar nas décadas seguintes.
A cada vez mais forte presença da palavra escrita, as paisagens desconstruídas, que Lapa explorará na série sucessivamente retomada dos Campésticos, as grelhas que surgem nos Os criminosos e as suas propriedades, os gestos fortes que determinam manchas contrastantes de preto e branco ou de cor ou verdadeiros amorfos, o recurso à colagem de materiais, são outras referências. Mas é também significativo o percurso que podemos fazer através dos títulos das suas obras e designações das suas séries, algumas já referidas aqui: Moradas da Terra-Mãe, Amnésia, Escuro, Mesa, Passeio iluminam, ao mesmo tempo que obscurecem, significados - por exemplo, em Que horas são que horas estamos perante o verdadeiro diário de alguém que espera a morte ou a liberdade ou nada.
O corpo do artista encontra-se em câmara ardente na Misericórdia de Matosinhos, e a cremação realiza-se amanhã às 15h no cemitério do Prado do Repouso, Porto.

(do Público de hoje)

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