15.8.06

[outros melros XL]

JOÃO MAIA


O Melro


Falaremos só do de bico amarelo? E a mélroa? Ora falemos de todos sem discriminação. Quando os homens, referindo-se ao parceiro, dizem «Que melro!», referem-se a algum desconfiadão que em primeiro termo trata de si e não dá passo em falso. Persuadiram-se de que o melro - lá porque de manhã, ao ir tomar o desenjoadouro, vistoria primeiro, com olho sagaz, se a gataria por ali espreita - era a fina flor da finura.
O que ele é, é um cantor que só canta com a barriga cheia. Logo de manhã vai aos pomares, para debaixo dos arbustos húmidos, e põe-se a esgaravatar. Envia para o estreito meia dúzia de bifes ingleses - ou seja, minhocas gordíssimas - e sobe de seguida para um ramo alto, onde se põe a assobiar como se a vida fosse uma festa preparativa de capitoso jantar.
Assobia, fechando os olhos e repetindo o trinado e virando-se à direita e à esquerda.
No tempo dos ninhos, escolhe a pernada a jeito; e não mostra subtileza a esconder-se. Em linha recta, transporta raízes e matana até que bonda. Em seguida, a mélroa vai buscar uns fios de penugem, e não tarda que cinco ovos a céu aberto garantam a continuidade da família. Nos silvedos próceres ou nas árvores de pomar mais copadas é que instauram a camarata.
Durante a criação, cinco bicos vorazes dão um trabalho que não pode afroixar. Carretos pesados de toda a bicharia, esgaravatada com consciência, cruzam os ares indiscretos. O bichano, cá em baixo assiste ao transporte, cofia os bigodes e programa uma caçada. Se lhe passa da ideia, em poucos dias os cinco comilões, crescendo em galão, vestem-se - e ala! De gorra com os pais, desabam nas hortas das cercanias e, com breves lições de cozinha, pegam a engordar e a ensaiar a solfa.
O pior é se o gato trepa pela árvore e dá com o berço a transbordar. Saúda-os, mesureiro, pega no mais gordo, e desce de novo todo contente. Um almoço que nem o rei da Inglaterra abicha em toda a roda do ano! No outro dia, ligeiro e sorrindo, volta a trepar e volta a descer. Alarmados, os melros induzem os restantes a tentarem o voo. Ao terceiro dia o bichano embatuca - e chama-se nomes por não ter sido mais previdente.
Melros com arroz é iguaria de deitar o santo a perder. Daí armarem-lhes laços e granizarem-nos de chumbo, não falando já na decapitação dos ninhos. Sabem-no eles muito bem; por isso ralham e fogem com voos em flecha, mal se sentem espiados. À noite, antes da deita, vê-los-eis queixumentos de ramo para ramo, pois todas as sombras se lhes afiguram malteses emboscados de clavina pronta.
Os homens, em geral, metem-nos na panela, não os metem nos livros. Mas em Portugal, além de Junqueiro, foi Ramalho Ortigão quem melhor deu guarida, na sua prosa cheia de boscagens e balseiros, a este vivaz passarolo, não obstante a pretidão da jaleca. O assobio são, viril, descontraído de todo, coadunava-se com a escrita lavada, matinal e rija. Um melro de Peso da Régua meteu-se-lhe numa página de prosa soberba - e ainda hoje lá está a assobiar e a infundir-nos o júbilo das coisas naturais.
O melro é, de facto, uma ave salubre. Gosta de comer bem e de subir ao coreto, disposto a partituras que não tenham de ser interrompidas por ventre a dar horas. A sua hora favorita é ao quebrar da manhã, na luz e na frescura. Perde a inspiração com os calores e gosta de se acompanhar sempre com a sombra de ramada, com o docel arbustivo onde, enquanto muda a página, possa retemperar-se com alguma sanduíche de boa fêvera.
As suas manhas não são escuras. Todos as sabem, só que nem todos as põem em acção. Da mesma forma, os homens, quando apodam o vizinho de «melro de bico amarelo», não lhe atribuem vigarices singulares: sublinham apenas que esse tal vela por si, não dá ponto sem nó, nunca escorrega a um puro desprendimento, e é firma para dar ouvidos às paredes e olhos às trevas da meia-noite. Por isso, embora seja apodo um nadinha depreciativo, vai adubado de certa simpatia sorridente - e até a amigos nossos muito conhecidos o damos de quando em vez.
É que o egoísmo dos melros não é agressivo. O que eles não querem é sacrificar um bom almoço a idealismos desmiolados. Tocar música em jejum não lhes quadra, por mais amor que tenham à arte. Psicologia um tanto epicurista, mas não destoa muito da alma humana, porque isenta de crueldade. E até nos arrebata involuntária complacência.

(de O Livro dos Animais, Apostolado da Imprensa, 1982)

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