4.6.10

[Prémio Camões 2010 - ouvir a evocação feita por Fernando Alves, na TSF]

FERREIRA GULLAR


SETE POEMAS PORTUGUESES

8


Quatro muros de cal, pedra soturna,
e o silêncio a medrar musgos, na interna
face, põe ramos sobre a flor diuturna:
tudo que é canto morre à face externa,
que lá dentro só há frieza e furna.

Que lá dentro só há desertos nichos,
ecos vazios, sombras insonoras
de ausências: as imagens sob os lixos
no chão profundo de osgas vis e auroras
onde os milagres são poeira e bichos;

e sobretudo um tão feroz sossego,
em cujo manto ácido se escuta
o desprezo a oscilar, pêndulo cego;
nada regula o tempo nessa luta
de sais que ali se trava. Trava? Nego:

no recinto sem fuga — prumo e nível —
som de fonte e de nuvens, jamais fluis!
Nem vestígios de vida putrescível.
Apenas a memória acende azuis
corolas na penumbra do impossível.

(de A Luta Corporal, 1954)


FORA DA LUZ

Derrubado em seu corpo na trevosa
boca doce da carne que o engole
como um sexo, dorme. E é lume o sono
que em vão se queima pelas torres jovens

Dorme fora da luz no velho esgoto
onde as harpas. Outubro flamabrando.
Às suas portas de carne adormecidas
a corneta do mar abandonamos

Resta o teu rosto solto a terra sacra
as aranhas de sal tecendo um cubo
Treme em teu lábio do dia assassinado
O sol o girassol a flama surda

Resta o facho de borco a flor perdida
o homem mordendo a sombra desse facho
As coroas da terra dissipando
seu escuro clamor na luz. E resta

de tal fogo tal facho trabalhado
às portas desse homem a leste dele
Fogo poeira pó pólvora acesa
na epiderme comum. Bonjour, Madame!

(de O Vil Metal, 1960)


DOIS E DOIS: QUATRO

Como dois e dois são quatro
sei que a vida vale a pena
embora o pão seja caro
e a liberdade pequena

Como teus olhos são claros
e a tua pele, morena

como é azul o oceano
e a lagoa, serena

como um tempo de alegria
por trás do terror me acena

e a noite carrega o dia
no seu colo de açucena

— sei que dois e dois são quatro
sei que a vida vale a pena

mesmo que o pão seja caro
e a liberdade, pequena.

(de Dentro da Noite Veloz, 1975)


VERSOS DE ENTRETER-SE

À vida falta uma parte
— seria o lado de fora —
pra que se visse passar
ao mesmo tempo que passa

e no final fosse apenas
um tempo de que se acorda
não um sono sem resposta.

À vida falta uma porta.

(de Barulhos, 1987)


(in Obra Poética, edições Quasi, 2003 - Arranjos para Assobio)

Sem comentários: