26.8.10

[recuperando séries antigas - gatos mortos]

BOHUMIL HRABAL

[...] O tio Pepin ficava sentado toda a noite, junto do aparador, completamente imóvel, atrás dele sentava-se o velho gato Celestino, roído pelo tempo do mesmo modo que a cara do tio; aquele gato, quando era novo, dormia sempre debaixo das roseiras e das peónias do jardim, sozinho, ele tinha tratado de quase todas as gatas dos arredores... bastava-lhe ficar fora de casa quinze dias. Ao regressar das suas escapadelas, gritava durante todo o caminho: «Abram a porta, vou para casa! Preparem o melhor que têm para me oferecer!...», e tinha tudo o que queria, como o tio Pepin... arisco, não deixava que lhe fizessem festas e, se tal acontecia, o Celestino atacava imediatamente e vencia sempre, como o soldado austríaco, chegou até a atacar o pai, saltando-lhe para as costas, quando este o repreendia com a vassoura na mão. Tinha a cara tão marcada das brigas como o tio Pepin tinha a cara cheia de rugas por causa das vadiagens nocturnas e do levantar de manhã cedo, do trabalho pesado na lavagem dos tonéis, nas caldeiras, nos frigoríficos e nos esgotos. Agora lá estavam sentados lado a lado, o tio Pepin apalpou a cabeça do gato e perguntou baixinho: «Estás aqui?», e o gato ronronava e rezingava, sentado, encostado atrás do tio, como um mocho nos ombros de uma vidente, o gato estava feliz e o tio também. Todas as noites se sentavam assim, sozinhos, falavam apenas um com o outro, já não conseguiam comunicar com mais ninguém. Depois aconteceu que, por duas vezes seguidas, o tio não conseguiu encontrar, às apalpadelas, a cabeça do Celestino e, por duas vezes, ninguém respondeu grunhindo à pergunta: «Estás cá?». Então o tio Pepin deixou definitivamente de andar, já nem se levantava da cama, exactamente como o Celestino, o velho gato, que já não voltou a casa, porque os velhos gatos não morrem em casa.

(excerto de A Terra onde o Tempo Parou, tradução de Ludmila Dismánova e Mário Gomes, edições Afrontamento, 1990 - fixões)

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