2.4.11

HANS MAGNUS ENZENBERGER


E. J. M. (1830-1904)


A sua droga eram os factos. Sempre correcto,
filho de um negociante de vinhos da Cote d'Or, corpulento,
positivista de colarinhos engomados, monóculo,
abotoado, espera, imóvel,
atrás do seu aparelho, por qualquer movimento, à caça
da mais fugaz das presas: a linguagem
dos próprios fenómenos
, um fantasma. Na rue
de l'Ancienne Comédie apresenta-se um novo espectáculo.

O professor aluga palco, sala, bengaleiros.
Tabiques, levantados à pressa: o salão pequeno
com o piano, a oficina mecânica e
(acessíveis por uma série de poleiros) gabinete de trabalho,
cama e arquivo. Resta um espaço enorme,
a pista, encerada a brilhar, e na qual,
diante de panos pretos e brancos, em baloiços,
fios, à luz de candeeiros, se apresentam os factos.

A pomba, atada ao braço de um carrossel,
voa ou algo a faz voar? O rasto
das suas asas é invisível; mas segue-a,
pneumaticamente controlado por um labirinto
de tubos e tambores, um estilete de aço;
tremendo, vai riscando o papel escuro de fuligem.
O que aí escreve e desenha, medindo-se a si mesmo,
é uma alucinação a que se chama «a natureza».

Padrões de elegância matemática, relações
entre frequência e tonalidade muscular, temperatura
e pressão: formas ondulatórias, oscilações, saltos.
Todas as variáveis da locomoção: La machine animale.
No ar e na água. A enguia, o pianista,
o molusco, o coração da salamandra: a tractriz,
a cissóide; curvas de remonte, de intercessão, envoltórias;
espirais, linhas de voo, diagramas... em suma, «o mundo»

é uma ilusão de óptica: nada do que vemos
é «como é», e aquilo que se mostra esconde-se.
Sempre casos mais precisos, instrumentos mais lógicos,
armas mais abstractas. O fisiólogo aponta
com a arma fotográfica automática:
o diafragma abre-se dezasseis vezes por minuto,
e a gaivota branca deixa atrás de si, contra a cortina
preta, uma imagem luminosa sem fim.

Ele ensaia, projecta, constrói a primeira câmara de filmar
do mundo. Não porque queira filmar: quer ver.
Nos Campos Elíseos. um homem desce
da bicicleta; ninguém sabe como.
Só a câmara lenta o pode mostrar. Por isso, ele inventa-a.
O seu teatro enche-se de astrofísicos, médicos,
luminárias da ciência. (Lá mesmo ao fundo da sala,
despercebido, senta-se um certo Edison, capitalista.)

Para estudar um insecto, tenho de construir insectos
E assim o investigador se transforma em demiurgo: falsifica
corações abstractos, pássaros accionados a hélice,
máquinas que respiram. No soalho encerado
rasteja o facsimile de uma cobra. Molda em bronze
o voo da gaivota. Um animal fantástico:
esvoaçar quadridimensional, locomoção congelada,
imobilidade que flui. Tempo que se pode tocar.

Um louco em cujas mãos tudo se transformava em artefacto,
idólatra da ciência da exploração,
cordeiro inocente, terror de Taylor abrindo caminho,
precursor inconsciente de Hollywood, nas horas vagas
artista, inventor contra vontade, Mallarmé
por engano, génio da reprodução: imóvel,
o olho do grande observador observa-nos,
violeta baço, uma íris cega de brometo de prata.


(de Mausoléu, tradução de João Barrento, livros Cotovia, 2004)

Sem comentários: