13.7.11

SOPHIA DE MELLO BREYNER ANDRESEN


A MULHER NA CIDADE DO HOMEM


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Quando olhamos para o passado vemos que a contribuição da mulher no mundo da criação é muito limitada. As leis, a filosofia, a matemática, a pintura, a arquitectura, a escultura, a música foram quase exclusivamente criadas por homens. A mulher aparece nalgumas artes como intérprete, raramente como autora.
Isto «parece mostrar» que a capacidade criadora da mulher só existe em planos secundários ou subsidiários.
Mas há uma excepção que nos coloca no centro do problema.
Esta excepção é a poesia.
Sapho, Emily Brontë, Emily Dickinson, Louise Labé são poetas na plenitude da criação. Para além do tempo e das mutilações, um fragmento de Sapho conserva aquele poder de invocação total que é a marca de fogo da grande poesia. E da nossa época não poderei deixar de citar Edith Sitwell, Nelly Sachs, que este ano recebeu o prémio Nobel, Gertrude Von Le Fort, que é um dos grandes poetas da transcendência, e Cecília Meireles que é um dos cimos da moderna poesia brasileira.
Esta excepção que a poesia é coloca-nos no centro do problema por duas razões: porque nos esclarece sobre a situação da mulher, porque nos esclarece sobre a natureza e a vocação de humanidade total da mulher.
A poesia é a arte que menos depende da contingência. Para escrever um poema é preciso ser poeta e depois basta um papel e um lápis.
A poesia pede a liberdade da alma que a alma por si mesma conquista, pede a escolha, a ascese, a atenção do ser a todos os seres e depois basta-lhe um papel e um lápis. O escultor ou o arquitecto para realizarem a sua vocação precisam duma longa aprendizagem com escola, mestre, atelier, público, encomenda e comprador. É por isso que, e isto nos esclarece sobre a situação da mulher, a escultura e a arquitectura, como a música, o teatro e a pintura, são artes que só florescem nos países onde existem circunstâncias propícias à cultura. Pelo contrário, a poesia é a arte que sobrevive e resiste nos países pobres, subdesenvolvidos e ocupados.
Se ao longo de tantos séculos a poesia foi quase a única arte onde a mulher mostrou capacidade criadora, isto não quer dizer que a mulher só era capaz de poesia, mas sim que para ela, como para um país subdesenvolvido ou ocupado, a poesia era a única arte possível. A única arte onde a pura liberdade do espírito criador podia resistir à pressão da contingência.
Se o nome Poesia deriva do verbo «poien» que significa criar é porque é na poesia que a criação se mostra no seu estado mais despojado e nu. O material do poeta é a palavra, a palavra que é por excelência o sinal humano. A poesia parte do verbo, do princípio, parte dum tempo anterior à contingência que é o puro tempo do ser. O espírito poético é o espírito daqueles que a si mesmos se reconhecem não como situação, mas como ser a caminho.
A poesia foi durante séculos a única excepção; mas a chegada do século XX traz consigo algo de novo.
A partir de então a capacidade artística e intelectual da mulher começa a mostrar-se em actividades que, embora não fossem em si mesmas masculinas, pareciam ultrapassar a possibilidade feminina. Todos conhecem o nome de Maria Curie, todos sabem que várias mulheres trabalharam nos cálculos matemáticos dos voos espaciais, todos conhecem a pintura de Maria Helena Vieira da Silva, a escultura de Bárbara Hepworth, Germaine Richier, Louise Nevelson.
No entanto as mulheres não fizeram uma revolução e ninguém fez, para elas, uma revolução. Simplesmente a humanidade avançou. Apesar das guerras, dos conflitos, dos crimes, dos abusos e da terrível pressão das forças de reacção, a nossa época tomou uma consciência nova do valor da vida humana. O nosso tempo não admite que existam vidas sacrificadas nem vidas diminuídas mas exige para cada ser humano o direito à plenitude da sua humanidade. E foi nesta consciência nova que a mulher acedeu àquele plano da criação onde a plenitude da vocação humana se mostra.
É evidente que a parte que a mulher tem tomado no trabalho do mundo moderno contribuiu para a sua emancipação. Mas só por si o trabalho não bastaria pois a mulher sempre trabalhou e em muitas épocas e lugares o trabalho para ela foi apenas uma duplicação da escravatura. Verdadeiramente a libertação da mulher a que estamos a assistir resulta da tomada de consciência da dignidade humana que é a grande e difícil tarefa do século XX.
Pois não existe o problema da mulher, mas sim o problema da humanidade. E é por isso que o Feminismo é um caminho errado e já ultrapassado. Aliás sempre à roda da mulher se criaram falsos problemas.
Assim muitas vezes se tem oposto vocação maternal e vocação criadora. Mas a maternidade é plenitude e não mutilação, é maioridade e não menoridade. E a maternidade que é natureza e vocação é também escolha e responsabilidade. Quanto mais responsável a mulher se sentir pelos filhos que tem, mais responsável se sentirá pelo mundo com que os seus filhos vão viver. E também através dos filhos a mulher compreende que verdadeiramente a sua causa não é a causa da mulher, mas sim a causa da humanidade.


(in A Mulher na Sociedade Contemporânea - colóquios na A. A. da Faculdade de Direito, Prelo editora, 1969 - Cadernos de Hoje)

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