SOUSA DIAS
(excerto de «Poesia, Arte Bilingue», in O Que é Poesia?, nova edição aumentada: Documenta, 2014)
[...] Como todas as artes, a poesia é experiência 
sensível, mas essa experiência não é a tradução estética da experiência 
vivida, não é a estetização do vivido. Não é a vida do criador que 
explica a obra de arte, quando muito é a obra que explica a vida, o modo
 de vida do autor. Impotência da psicologia em arte, ou a arte como uma 
antipsicologia objectiva, «poder do falso» (Nietzsche). Sem dúvida, cada
 poeta fala das suas experiências. Mas trata-se de experiências
 que são já uma evasão do vivido, a auto-ultrapassagem do vivido na 
sensação, em fulgurações visionárias de uma subjectividade alucinada, 
arrancada a si, posta na linguagem fora de si. Todos os poetas convergem
 neste ponto. «Os versos não são sentimentos, são experiências», 
escrevia Rilke (ou o seu heterónimo Malte Laurids Brigge), experiências 
literárias cuja matéria-prima não são pois vivências, nem mesmo a 
memória das vivências, mas antes, em termos rilkeanos, a sua marca «já 
sem nome» no poeta, o seu rasto anónimo no esquecimento de tudo: por 
exemplo a Infância pura tal como nunca foi vivida nem dada na 
recordação, o puro Amor como a invivível essência afectiva dos amores 
vividos. Mallarmé por sua vez falava da poesia como uma experiência sem 
eu, subtractiva do eu, como uma experiência de «destruição» do eu como 
ele dizia, mesmo se a experiência mallarmeana, ao encontrar no lugar do 
eu abolido apenas a linguagem e nada mais além dela, tendia a abolir com
 ele também a sensação, toda a sensibilidade, o 'pathos' poético. Paul 
Celan repetirá que «a arte põe o eu à distância», mas já antes Trakl 
aspirara a uma poesia «impessoal e saturada de visões», Pessoa 
autopsicografara o «fingimento» poético, a irredutibilidade da emoção 
poética à emoção psicológica, e Ruy Belo dirá que o poeta «imolou o 
coração à palavra». Eugénio de Andrade confirma: «a poesia é uma arte 
impessoal». Como o é toda a arte. 
(excerto de «Poesia, Arte Bilingue», in O Que é Poesia?, nova edição aumentada: Documenta, 2014)
 
 
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