27.2.05

ANTÓNIO RAMOS ROSA

ATRAVÉS DA MEMÓRIA

a Jorge de Sena

Apenas sei que o Verão em mim cantou
Um breve tempo, e já não canta mais.
Edna St. Vincent Millay

Não é apenas o dom
extremo da delicada atenção,
a generosa paciência,
esse toque subtil que se desfere,
após o gosto cheio da palavra redonda,
na zona branca da perfeição.

A página
ali esperava.
Mas quanto antes
na azáfama alheia e neutra
de uma viagem de eléctrico,
numa paragem,
num cinema,
numas escadas toscas solitárias,
num gosto de café, nesse amargo especial
do cigarro, que é um convite, um sinal,
ela, a forma esplêndida,
com a miragem de um espelho,
com a auréola de uma árvore brilhante,
nua como uma espada,
brilhara,
na mente fatigada, mas logo límpida,
sinal brusco, e, no entanto, liso,
a forma preciosa.

Não.
Não fora apenas esse dom inato,
nem essa pureza rápida da inspiração,
nem esse acalento sossegado à noite,
esse cerrar de lábios,
esse branco vazio,
esse tumultuar de palavras prontas
a passar pelo crivo.

Não.
Mas já no tempo, nesse longo ciciar
de folhas durando na memória,
de dicionários rotos e tristes,
mas que é gostoso desfolhar na impaciência,
já nessa amorosa e repetida paciência,
com que se inclinara ao longo de crepúsculos
em que meninos atiravam pedras longe,
sim, sobretudo nos crepúsculos,
nessa limpa mágoa que nos vem de árvores ao frio
e dos seus braços magros,
já, já se adivinhara esse respirar de sílabas
fluindo em graça pura,
não plumas,
mas sílabas certas e claras,
sílabas onde o destino bate
com a grave leveza de quem dança
de noite, entre as estrelas.


essa saudade calma
alguma vez pousara
na fronte do poeta;
já esse Verão uma tarde
depusera
seu pó alegre e estático
como um pólen
nas suas mão suaves.

Mas nunca
ele cantara assim.

N. do A.: [Os versos da epígrafe] são extraídos de uma tradução do soneto «What lips my lips have kissed», da autoria de Jorge de Sena, inserta na página «Cultura e Arte» de O Comércio do Porto, de 12 de Agosto de 1958. O poema Através da Memória foi publicado na página «Artes e Letras» do Diário de Notícias, em homenagem a Jorge de Sena por essa tradução. A expressão «saudade calma», empregada neste poema, e também extraída da referida tradução.

(de Viagem Através De Uma Nebulosa, 1960)


EDNA ST. VINCENT MILLAY

(Sonnet XLIII)

What lips my lips have kissed, and where, and why,
I have forgotten, and what arms have lain
Under my head till morning; but the rain
Is full of ghosts tonight, that tap and sigh
Upon the glass and listen for reply,
And in my heart there stirs a quiet pain
For unremembered lads that not again
Will turn to me at midnight with a cry.
Thus in winter stands the lonely tree,
Nor knows what birds have vanished one by one,
Yet knows its boughs more silent than before:
I cannot say what loves have come and gone,
I only know that summer sang in me
A little while, that in me sings no more.

(de Collected Sonnets, 1941)


WHAT LIPS MY LIPS HAVE KISSED

Que lábios os meus lábios já beijaram,
Onde e porquê, esqueci, como em que braços
Até pela manhã tive a cabeça;
Mas esta noite a chuva traz espectros

Que batem na vidraça, à escuta, à espera;
E uma saudade calma há no meu peito,
De jovens que não lembro e nunca mais,
Noite alta, me desejam num soluço.

Qual árvore isolada, assim, no Inverno
Não sabe de aves idas uma a uma
E só seus ramos sabe mais silentes,

Não sei que amores vieram e partiram:
Apenas sei que o Verão em mim cantou
Um breve tempo, e já não canta mais.

(tradução de Jorge de Sena, in Poesia do Século XX, de Thomas Hardy a C. V. Cattaneo)

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