10.6.05

GEORGES BRAQUE


Le Portugais, 1911-1912
óleo sobre tela
80x106 cm
Kunstmuseum, Bâle




MÁRIO CLÁUDIO

Retrato do português


A reconstrução de um homem possível, de outro partindo que o modelo apenas deixa adivinhar, poderá significar a conquista da maioridade para os cidadãos de qualquer país. Pensamos na charada que é "Le Portugais" de Georges Braque, que alguém nos assegura, com o indisfarçável entusiasmo que corresponde ao sentir-se escutada a pequena voz da pátria, nem mais nem menos representar que o arquetípico Amadeo de Souza-Cardoso.
Vemos daqui a fervilhante chusma de estudiosos, destacando e numerando, ordenando e reunindo os centenares fragmentos de que o óleo se compõe, lançados nesse puzzle electrizante que poderá valer-lhes a descoberta do mais verídico dos rostos. Já sobre a banca de trabalho dispuseram os elementos necessários, e só o instante aguardam da revelação, se não da figura do amarantino, ao menos de um companheiro seu, sósia dele quem sabe, de feições desfocadas pelas brumas do noroeste.
É sempre com o sorriso irreprimido do chauvinismo gratificado que o nome de um dos nossos, de uma cidade que seja, em livro ou em filme se nos depara, ao plano guindado da vénia do próximo. Nessa alegria a custo iludida, porque enfim todos somos iguais e europeus e usamos relógio, muito irá da consciência de nós e do respeito da individualidade.
Que o português mitológico, ou outro comuníssimo por essa via promovido, andasse por França de braço dado com muitos grandes como Braque, tantos quantos ele mesmo e Amedeo Modigliani, eis o que não deixará de nos surpreender. Acompanhamos-lhe os passos, saídos de uma infância em que as papas iguais partilhámos, desembocados numa adultez em que protestámos contra o governo geral, pela adolescência transitados em que no idêntico jogo-do-pau nos fomos treinando. Mas que nos importa que seja um consagrado o da tela de Braque, desde que o reconhecimento da nacionalidade se encontre assegurado? O mesmo seria, para o efeito, se de um empresário se tratasse, a Paris deslocado a fim de recrutar seu modesto trio de contorcionistas cintilantes.
Daqui continuamos, porém, espiando os investigadores, proficientemente debruçados sobre as peças baralhadas de seu jogo. Intentam talvez uma imagem provisória, que da conclusão os salve de que nenhum lusíada se teria feito presente no pensamento e no pincel do cubista exemplar. E logo prosseguirão confrontando narizes e orelhas, agitando no ar os braços neuróticos, na frustração dos resultados por atingir.
Quanto a nós, terminada a crónica, na dúvida ficaremos, assim mesmo nos querendo para os tempos mais próximos. Nesse estar ou não estar certo artista consabido de Portugal, entre traços e sólidos, algo se contará daquilo que somos, do desejo de em perpétuo nos irmos inventando.
E no fundo de suas tintas, sempre atento, o vago personagem catrapisca, macaqueando o falatório com que o brindam. Dir-se-ia reclinar um pouco sobre direita a cabeça aguda, como quem se interrompe na expectativa de uma confidência, procura acertar ideias para proferir seu oráculo.
Deixemo-lo só, por ora. Saudemos entretanto, mais que todos, o português anónimo, inseguro, apostado que vai na descoberta de si mesmo.

(in O Outro Génesis, antologia organizada e prefaciada por Paula Morão, Rolim, 1988 ? originalmente publicado no Jornal de Notícias de 8 de Setembro de 1984)

1 comentário:

Gabriela Ventura disse...

Caro, que delícia de blog!

Obrigado por ter postado o texto de Mario Claudio, que vinha procurando há tempos, uma vez que o livro não é encontrado no Brasil.

Um grande abraço.