15.4.10

[ver: Autobiografia e notícia no Público]

JAIME SALAZAR SAMPAIO


intervalo


nesta página onde minuciosamente não há poesia.
estou em liberdade.
se uma palavra me desagrada pela música
deixo-a ficar, não se trata de lisonjear o ouvido;
se não encontro a imagem, escrevo com tinta
de cor diferente ou deito-me de costas ao sol.
e no fim estarei satisfeito,
o que é muito importante.
sim, sim: é exacto haver colarinhos a mais nesta
cidade-museu-capital-de-império e um grande,
um esponjoso pavor do ridículo espalhado
nas ruas e no sangue dos seus habitantes.
ora eu, como ia dizendo; sejamos ridículos.
chegou uma hora em que é forçoso sermos
ridículos, é saudável sermos ridículos, é grande
(arre!) sermos ridículos, não sabemos
(os inocentes...), não tomamos parte,
não somos um mundo, não estamos;
ora pois arrebentemos connosco
à força do ridículo.
e como ainda temos na cidade talvez
um último amigo, depressa: bebamos com ele.
se de tudo isto ficar um dia perdido, alguma coisa
— há outros caminhos.
por hoje, sejamos ridículos sem caminho nem
carro nem velocidade; apenas com esta página
entre os dedos, onde definitivamente não houve
poesia e um homem respira a seu modo
a migalha áspera da liberdade provisória.


(de o viajante imóvel, Plátano editora, 1979)

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