MÁRIO BOTAS
Romance de D. Sebastião de Portugal e Gabriel de Espinosa
Pasteleiro em Madrigal
em memória de Mário Botas
Romance de cordel impresso anonimamente em 4 de Agosto de
1983 e encontrado por Almeida Faria
I
Em Portugal houve um rei
de nome Sebastião
era um dos donos do mundo
ele e Felipe II
seu tio e seu sucessor
como contarei depois
Este D. Sebastião 
nasceu póstumo do pai 
aos três anos era rei 
aos onze anos sofria 
de qualquer venéreo mal 
que ficou por explicar
Não queria D. Felipe 
dar-lhe em casamento a filha 
enquanto se não curasse 
o que nunca sucedeu 
e assim este rei cresceu 
doente e desesperado
Tomou horror às mulheres 
cujos olhares evitava 
educado pelos padres 
achava-as causa do mal 
que sofria em sua carne 
e o tornava incapaz
Chegado aos vinte e quatro anos
juntou todos os navios
que conseguiu reunir
dentro e fora do país
e mais três mil mercenários
e mais soldados do Papa
E em 25 de Junho
zarpou para o norte de África
em derradeira cruzada
até que em 4 de Agosto
em pleno deserto ardente
sete a oito mil soldados
Sendo uns dois mil a cavalo 
de armaduras a escaldar 
sob o incêndio do sol 
e armas que a grande armada 
trouxera inúteis a bordo 
pesadas para o areal
Morreram às mãos dos árabes 
que ágeis em volta giravam 
e com leves cavaleiros 
depressa os desbarataram 
trucidaram saquearam 
em poucas horas fatais
Assim acabou a vida
do jovem rei desgraçado
do jovem rei suicida
em vingança contra a sorte
que o fez doente e demente
em vez de são e sensato
Assim morreu um império 
que ao fim do mundo chegava 
assim começou o quinto
império que nunca será 
assim chegámos ao fim 
do rei muito desejado
Assim em 4 de Agosto 
de 1578
morreu louco e temerário 
o senhor de Portugal 
morreu ele e a fina flôr 
da sua casa real
II
Quase vinte anos passados 
apareceu em Madrigal 
no deserto de Castela 
um pasteleiro parecido 
com o rei desaparecido 
e em Portugal desejado
Dona Ana de Áustria sobrinha
do rei Felipe II
rei de Espanha e Portugal
recebeu o pasteleiro
na cela do seu convento
e deu-lhe jóias reais
Estavam noivos ou casados 
pelo monge Miguel dos Santos 
quando Felipe II 
prendeu os três e matou 
o monge e o pasteleiro 
que se dizia ser rei
A pobre Dona Ana de Áustria 
foi condenada à clausura 
mais dura e mais solitária 
por receber no seu quarto 
esse D. Sebastião 
fosse verdadeiro ou falso
Era isto em Madrigal 
longe do mundo e do mar 
longe de um país e povo 
ainda capaz de durar 
outros quatrocentos anos 
e durante quantos mais?
Após o grande desastre
sem rei nem roque a reboque
de outros desertos maiores
para lá de longos mares
quem aguarda um rei de fábula
vencido e contudo amado?
Muitos à esquerda e direita 
mesmo que não seja rei 
mesmo que não traga a lei 
mesmo que seja Ninguém 
vaga imagem vã miragem 
de outro verão em outra idade
Que seja e isso já basta 
algo a que a gente se agarre 
nesta aridez irreal 
que enlouquece e dá coragem 
aos cansados de esperar 
por promessas de Eldorado
Que a desforra da derrota 
venha logo e original 
mas não dê muito trabalho 
para a gente não cansar 
que a vida é curta e confusa 
e a morte dura demais
Que o império não exista 
senão no sonho é igual 
que se prefira sonhar 
em vez de ver e olhar 
que se force o impossível 
é igual tudo é igual
Tudo isto de resto é história
e não sei se tem moral
de um rei louco e de seu duplo
e do duplamente louco
povo deste Portugal.
(gravura e texto in Prelo, 1 – Imprensa Nacional – Casa da
Moeda, Outubro/Dezembro de 1983)
 
 
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