29.6.03

IRENE LISBOA

«Irene Lisboa é uma dessas figuras da nossa cultura cujo nome já ouviram, mas que muito poucos sabem quem é.» - Paula Morão

«PARA MIM É A MAIOR ESCRITORA DE TODOS OS TEMPOS PORTUGUESES. LEIAM-NA» - José Gomes Ferreira

Nasceu a 25 de Dezembro de 1892, perto de Arruda dos Vinhos.
Fez o Magistério Primário e distingue-se em estudos de Pedagogia, tendo estudado na Bélgica e na Suiça.
Entretanto, a partir de 1926, escreveu dispersa, mas regularmente em muitas publicações importantes da altura (presença, O Diabo, Sol Nascente, Seara Nova, etc.).
Apesar de bem acolhida pela crítica, teve grandes dificuldades em editar.
Morreu em Lisboa, em Novembro de 1958.
A sua Obra tem vindo a ser editada desde 1991 pela editorial Presença, com a coordenação de Paula Morão, que tem sido a sua grande divulgadora.

fins de junho

Sinto-me olhada a furto.
Olham-me,
espiam-me
com modo céptico
e meio terno.
Entra em mim,
torna-me inteira
um estranho retraimento,
desdém,
ou indiferença.
A minha vontade é de fugir,
de me libertar,
de me recuperar...

Depois, fora,
oprimida
e entristecida,
desejo reconstituir,
sem saber bem como,
o fio trémulo da vida...
Desejo sentir-me apreciada,
enobrecida!

[de um dia e outro dia... (diário de uma mulher), Seara Nova, 1936 - com o pseudónimo João Falco]

Os pássaros

Fico-me a olhar os pássaros.
É o mole, longo, estirado desenho dos voos, a
linha bamba dos voos, ora cortada, sacada, ora
retrocedida e inversa, oposta e repetida... ou a
figura negra e viva dos pássaros que mais nos
interessa?
Que olhamos com mais gosto?
Que se fixa mais impressionante no plasma da
Nossa mente?

Pintores e poetas, que escolher?
Formas ou linhas?
Linhas, tremor, movimento, agitação do espírito?
Formas, corpos, envasamentos?

Os pássaros indiferentes não param...
Amigos!
Ondeiam, sobem, vão e retrocedem, infatigavel-
Mente retrocedem...

[de Outono Havias de Vir (Latente Triste), Seara Nova, 1937 - com o pseudónimo João Falco]

Coisas da Terra

A Engrácia e a mãe
chegaram numa tarde de domingo.
A Engrácia é minha sobrinha
E a mãe,
Que eu ainda só vira duas vezes,
minha irmã.
Minha irmã...
uma pobre mulher,
uma simpática desconhecida
que vem ao hospital
ver o seu marido.

Esta é a minha gente.
Penso da mulher:
Parecemo-nos.
Temos os mesmos olhos e boca,
o mesmo nascimento de cabelos.

Oito filhos teve já a minha irmã.
Uma filha que lhe morreu
levou o seu nome.
Este mistério que eu sou!
Filha de outro pai,
noutra terra criada,
lá vivida!

Dou pão com manteiga à Engrácia,
Que não diz nada.
A mãe fala.
É o campo toda ela,
o seu cheiro até
e a sua resignação.
Conta coisas do António,
o meu sobrinho mais velho,
com o seu exame feito
e tão amigo de ler...
Mãe! coitada, penso.
Oiço-a,
esquecida do nosso parentesco.
As duas ali estão:
a criança vestidinha à cidade,
a mulher humilde e amável.
Tudo tão natural e pobre!

[de Folhas Soltas da Seara Nova, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1986 - originalmente publicado em 1940 com o pseudónimo João Falco]

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