2.7.03

PAULO PAIS
Não sei nada dele, a não ser que é o nome que subscreve um livro intenssíssimo, publicado na colecção Aprendiz de Feiticeiro (é o nº 26) em 1997, com o título Gravador de Chamadas. A obra está dividida em três partes (3 livros??).

IDANHA-A-VELHA

Após todos os vultos as mulheres
ficam sempre arrumando tudo
limpam o pó dos homens
abrem-lhes o caminho de volta
dão destino às coisas
encarreiram a vida

sentam-se rente aos sulcos da terra
prenhes de segredos
regam a paciência com o esperma que lhes cabe
aprendem com os gatos a desprezar em silêncio

velhas cúmplices da vida
tudo aprenderam para lá dos mortos


(de Notas de Campo)

III

Os anjos preocupam-se com a desordem do mundo
pressentem os fungos nos ossos dos que se deitam com frio
a densidade salina das lágrimas
o volume do medo das bestas na hora do abate

por vezes definem com astúcia a tensão do sangue
seguram a mão na pressão exacta controlam a voz com
aptidão exemplar


pai, gosto muito de ti
e a infância escorre pelo rosto da memória
entretidos os homens com os recados da inocência


(de Figuras de Apego)

Pôde ver por momentos na goela da terra o que
a terra faz nas entranhas
viu lá onde tudo se passa o nítido seio da terra
o grande silo do sangue
os rostos lésmicos dos mortos
o rasto factual da morte

esperou que algo de surpreendente acontecesse
talvez um verme gigante numa pápula vegetal
talvez um anjo finalmente vingador
uma luz

súbito a mão de deus cobriu-lhe os olhos ou era
o vidro limpo da rotina dos dias?

uma buzina lembrou-lhe que o mandavam avançar


(de Gravador de Chamadas)

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